domingo, 4 de dezembro de 2011

HISTÓRIA: Hora de corrigir teses, artigos e livros escolares


Erro de João Simões Lopes Neto gerou o mito. Mas, José Pinto Martins não era cearense, tampouco fundou a primeira charqueada

 Por Carlos Cogoy

            Pelotas deve seus primórdios a dois fatos: a ocupação castelhana de parte do território do Continente; e ao assentamento dos “Cazaes” feito pelo governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara. A importância de José Pinto Martins para o desenvolvimento da indústria saladeril no Continente do Rio Grande é um mito. A charqueada fundada no ano de 1780 é outro mito. A história da cidade de Pelotas está, desde muito, precisando de um novo olhar e de novas interpretações. Interpretações com menos equívocos e sem mitos. As afirmações são de Adão Fernando Monquelat e Valdinei Marcolla (V. Marcolla), na conclusão do artigo “Pinto Martins – O mito de um século”, publicado no Diário da Manhã a 4 de setembro deste ano. Os autores há bom tempo tem revirado arquivos no Estado, Uruguai, Argentina e até Europa. Como resultado, descobertas que tem sido publicadas regularmente no DM. Os artigos foram reunidos em livros. Monquelat publicou “Notas à margem da história da escravidão” (2009), e “Senhores da Carne” (2010). Já Monquelat e Marcolla lançaram "O Desbravamento do sul e a ocupação castelhana" e "O processo de urbanização de Pelotas e a fazenda do Arroio Moreira" em  2010.
  MITO – Para Monquelat e Marcolla, a origem do mito – José Pinto Martins como “cearense” que fundou a primeira charqueada em 1780 -, reside na Revista do Centenário (1911/12), autoria do escritor João Simões Lopes Neto (1865/1916). Monquelat ressalta a qualidade literária do autor de “Lendas do Sul”, mas também identifica o equívoco de Simões. E observou que Simões não foi questionado sobre a fonte na qual teria encontrado o ano de 1780 para a primeira charqueada. Em 1922, Fernando Osório reiterou o erro na obra “A Cidade de Pelotas”. Mencionando artigo de Paulo Xavier no Correio do Povo em 1971, Monquelat lista mais três fontes que repetiram o erro: “Retrospecto econômico e financeiro do RS” de 1922; Dicionário biobliográfico, autoria do Barão de Studart e publicado no Ceará em 1913; Renato de Almeida Braga – ex-diretor da Escola de Agronomia do Ceará.

            PESQUISA de Monquelat e Marcolla identificou que a primeira menção a José Pinto Martins está em documento de 1796. Já a primeira charqueada é atribuída a João Cardoso da Silva – o ‘João Cardoso’ do conto consagrado de Simões Lopes. Outro aspecto é que, nos primórdios do Rio Grande, a base econômica na região não era a charqueada mas o “agro-pastoreio”. Em destaque, frisa Monquelat, o trigo cultivado com braço escravo. Para reunir as informações que contestam a história oficial, pesquisadores recorreram ao Arquivo de Las Índias na Espanha, Arquivo e Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo do Conselho Ultramarino em Portugal, Archivo General de La Nación em Buenos Aires.


Desfazendo mitos
será a nova obra

            Até abril de 2012, Monquelat e Marcolla estarão lançando novo livro. Trata-se de “Desfazendo mitos – Notas à história do Continente de São Pedro”. No volume, 22 artigos. Alguns versando sobre a “urbe”  Pelotas. Monquelat acrescenta: “A sesmaria Monte Bonito é chave para compreender a cidade de Pelotas”. Mas a maioria dos artigos, diz o autor, será sobre o charque e as charqueadas. Seis textos abordarão sobre o cólera – em especial o número de vítimas. Os três últimos focalizarão temas diversos. Conforme Monquelat, dois são “fundamentais e justificam o título”.

            POLÊMICA – O autor destaca o artigo “Rio Piratini: berço da indústria saladeril?”. “É a história de um soldado da cavalaria ligeira – nascido em 1752 -, João Cardoso da Silva, personagem de Simões Lopes Neto”. O outro texto “E agora José? Ou José e seus irmãos ou os Irmãos Pinto Martins”, baseia-se nas memórias do vereador Manoel Esteves Almeida D’Almeida de Aracati no Ceará. Trata-se das peripécias dos irmãos portugueses Pinto Martins.  O livro terá apresentação do prof. dr. Luis Rubira (UFPel). Textos tem sido compartilhados por Monquelat e Marcolla. Basta acessar: povoamentodepelotas.blogspot.com


Arroio Grande sediou a primeira
charqueada no século dezoito


            Vestígios históricos indicam que a prática de “charquear”, remonta às primeiras décadas do século 18. Conforme Adão Monquelat, tropeiros e “lagunistas” secavam a carne para dispor do alimento nos deslocamentos. Eram “nômades”, que usavam o charque para sobreviver. Portanto, não havia produção visando o lucro.

            HISTÓRIA – O pesquisador também menciona que os indígenas tinham o preparo do “charqui”. A carne secava ao sol, sem adição de sal. Em carta de Gomes Freire de Andrada, datada de 1737, há menção ao “charque”. Em 1752 na vila do Rio Grande, conforme documentação, estância tinha a designação “Charquiada”. Ao fim do século 18, o charque está na Colônia Sacramento. Em 1787, espanhóis descobrem o “segredo” para a conservação da carne. Os experts eram os irlandeses, que abasteciam as Armadas de Portugal e Espanha, com as carnes em barris. De acordo com Monquelat, citando a “História das Missões Orientais do Uruguai” de Aurélio Porto, em “1700 Laguna exportava charque fabricado no Rio Grande”. Os dados, diz ele, em relação ao Continente do Rio Grande, comprovam que não foi José Pinto Martins que iniciou a charqueada na região. Outro fato é que as primeiras charqueadas não foram em Pelotas, mas em território que atualmente pertence ao município do Arroio Grande.

            JOÃO CARDOSO – No Conto de Simões “O mate de João Cardoso”, há referência ao Passo da Maria Gomes. O local seria para os “lados da Forqueta Grande do Piratini”. A indicação coincide com documentos, que apontam para charqueadas nas proximidades do Forte do São Gonçalo, que existiu até 1762. Adão transcreve trecho de documento: “Suplicante (...) [João Cardoso], o primeiro que instituiu, aqui, a fábrica de carnes de charque, dando aos demais as ideias e noções necessárias para o [desenvolvimento] de um ramo tão vantajoso ao Estado e bem comum, o que é conhecido por V. Exa.”. Noutro documento, afirma ser “um dos mais antigos colonos deste Continente, o primeiro que nele, à minha custa, erigi Fábrica de Charque, que tanto tem cooperado para o seu aumento” (crescimento, desenvolvimento). Em 1785, comissário espanhol José Varela y Ulloa, reclamava ao Vice-Rei Luís de Vasconcelos e Souza, que portugueses estariam em terras da Espanha. Trecho: “(...) junto às ruínas do Forte de São Gonçalo, reconheceu o curso do Piratini pelo espaço de 7 ou 8 léguas, em cuja distância achou três charqueadas e quatro Estâncias, denominadas de Muniz, Cangas, Correa e Pinto e Ferreira, situadas umas e outras na margem meridional deste Rio”.



Irmãos Pinto Martins
de Portugal para cá


            José Pinto Martins nasceu na freguesia do Meixemel em Portugal. O primeiro registro dele no Continente do Rio Grande, é bem posterior ao alegado 1780. Em 1796, Pinto Martins é um dos que assinam uma representação à “Sua Majestade”, clamando por sal para tocar as charqueadas. De acordo com Monquelat, não há prova documental da presença entre 1780 e 1795. Aliás, em 1787, José Pinto Martins então em Recife, entra com pedido para ser “Familiar de Santo Ofício”. Para participar, espécie de “espião” da Igreja, requisitos como ser “puro de sangue, nem negro, mulato ou judeu”. Já o sal, em 1800 passou a ser liberado para os charqueadores do sul.

            OPULÊNCIA – Com base no trabalho “A Saga dos Pinto Martins”, autoria do prof. dr. Antonio Otaviano (UFPA), Monquelat cita a trajetória dos quatro irmãos portugueses. Os pais perderam propriedades em Portugal, tornando-se caseiros. Com isso, o irmão mais velho João chega ao Brasil com dez anos. Pobre, aos dezesseis casa com a cunhada de comerciante e charqueador. Torna-se sócio do comércio. Abastado, manda vir o irmão Bernardo. Alem de charqueadores, também tem loja em Aracati, e transportam sal na rota Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco. Ricos, recebem os irmãos José e Antônio.

            DECADÊNCIA – Numa briga com negro, Bernardo é esfaqueado e morre. Naquele mesmo ano também morre João. As viúvas não tem interesse em seguir com os negócios, e o patrimônio é liquidado. Os irmãos mais novos, dedicam-se à rota para o transporte do sal. Entre 1789 e 1790, José e Antônio chegaram ao Rio Grande. Por aqui, somente após a Revolução Farroupilha é que se constitui um “pólo saladeril”.

            HISTÓRIA – Em dezembro, Monquelat e Marcolla estarão publicando novos artigos no DM. Eles salientam: “A história de uma cidade é a história de uma comunidade; e não, a história de uma elite. A história de uma cidade não é a história de seus barões, saraus, doces e licores. A história de Pelotas precisa ser espremida, é preciso fazê-la ranger”.

____________________________
* Matéria publicada no Jornal Diário da Manhã, no dia 29 de novembro de 2011.

Nenhum comentário: