domingo, 25 de dezembro de 2011

JOSÉ PINTO MARTINS E SEUS IRMÃOS (Parte 1)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Concluímos a 3ª e última parte de nosso artigo anterior, “Rio Piratini: berço da indústria saladeiril?”, aventando a hipótese de, caso José Pinto Martins tivesse estabelecido sua charqueada no ano de 1780, à margem direita do Arroio Pelotas, teríamos, então, dois precursores e dois polos saladeiris: um fundado por João Cardoso da Silva na margem meridional do Rio Piratini e outro na margem direita do Arroio Pelotas.
No entanto, e desde há muito, suspeitávamos de que Pinto Martins não estava e tampouco esteve em Pelotas, entre os anos de 1777-80. Portanto, dada a falta de prova documental, não foi Pinto Martins o pioneiro da indústria saladeiril no Continente de São Pedro. Tal primazia, por ora, cabe a João Cardoso da Silva.
A saga dos irmãos João, Bernardo, José e Antônio Pinto Martins, no Brasil, teve início no ano de 1749.
Os irmãos Pinto Martins eram filhos de Catarina Martins e João Ferreira Pinto, homem de pouca instrução, “que deixara suas terras de origem na Freguesia de Santa Eulália de Passos para morar em Meixomil. Lá viveu das jornadas de seu trabalho que exercia como cavador de poços ou atendendo os termos da época, como mineiro d’agua” (grifo do Dr. Antonio Otaviano Vieira Junior, autor do trabalho “De Família, Charque e Inquisição se fez a trajetória dos Pinto Martins (1749-1824)”, uma de nossas fontes para a feitura deste artigo).
O primeiro dos filhos do casal Catarina e João, a chegar ao novo mundo, foi o filho mais velho, João Pinto Martins (1739-1787). Chegou à nova terra com dez anos de idade (1749), pobre e sem parentes à sua espera.
Aos dezesseis anos (1755) casou, em Recife, com a cunhada do comerciante e fabricante de carnes secas, João Coelho Bastos, de quem logo se tornou sócio.
João enriqueceu e nessa condição mandou vir de Portugal o irmão Bernardo (1755-1787) que, logo depois de ter chegado ao Brasil, casou com a irmã da mulher do irmão.
Juntos, João e Bernardo ampliaram os negócios (de fazendas, charque e sal), estabelecendo uma rota comercial entre Aracati, Mossoró e Recife.

OS PINTO MARTINS: FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO

Vieira Jr., apoiado em diversos outros autores e fontes, nos diz que os familiares eram uma espécie de milícia voluntária à disposição do Santo Ofício e que “na prática eram espiões que tinham a competência potencializada não em ações concretas, mas no clima de vigilância que era criado a partir de suas nomeações”.
Diz-nos, também, Vieira Jr., que “O pedido para nomeação como Familiar do Santo Ofício era passo importante, trilhado por tantos outros comerciantes, incluindo os três irmãos de José [Pinto Martins]. E se efetivava como forma de promoção social, principalmente utilizada por membros de uma elite comercial lusitana [...]”.
Quanto ao Brasil, o perfil dos candidatos a Familiares do Santo Ofício era, “em geral, de comerciantes que originalmente pertenciam a segmentos sociais com poucos recursos e que posteriormente acumularam fortuna em terras brasileiras”. Assim como tantos, os irmãos Pinto Martins se encaixavam perfeitamente nesse perfil.
Segundo Vieira Jr., João fez seu pedido de habilitação no dia 01 de fevereiro de 1774, e Bernardo registrou sua habilitação em 11 de abril 1781.

UMA TRAGÉDIA NA CASA DOS PINTO MARTINS

Em seu “Registro de Memória dos Principais Estabelecimentos, Fatos e Casos Raros Acontecidos” na Vila de Santa Cruz do Aracati, feita segundo a “Ordem de S. M., de 27 de julho de 1782”, diz-nos o vereador Manoel Esteves de Almeida que, dentre os inúmeros escravos do capitão-mor João Pinto Martins e de seu irmão Bernardo, havia um negro de nome Francisco, casado com uma escrava dos mesmos Senhores que, certa noite, por ciúmes, com duas facadas matou a mulher.
Bernardo, acudindo aos gritos da escrava, foi em seu socorro e acabou sendo esfaqueado por Francisco, vindo a morrer poucos dias depois.
Ainda naquela mesma noite, o escravo invadiu a casa e esfaqueou o sobrinho de Bernardo e uma índia pequena.
A notícia da tragédia logo se espalhou pela Vila, fazendo com que um grupo de moradores para o local se dirigisse e cercasse o escravo que, acuado e desesperado, “meteu a faca em seu próprio corpo, de sorte, que lhe fez um horroroso talho em cima do umbigo, e logo saltaram os intestinos fora; e não satisfeito com este mal, passara a faca à goela, cortando-a [...]”.
Essa tragédia aconteceu no ano de 1787, ano em que também morre o irmão mais velho, João.
Para Vieira Jr., após as mortes de João e Bernardo (1787), é provável que as famílias das esposas tenham encerrado os negócios no Ceará.
Entende Vieira Jr. que outro ponto a ser destacado “a partir da análise das habilitações de José Pinto Martins e de seus irmãos”, que ajudaria a explicar como um filho de mineiro d’agua em Portugal, “se transformou em rico comerciante no Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Sul” é a “montagem de estratégias que envolviam a articulação e o apoio mútuo entre os irmãos”.

O PEDIDO (1781) E A CONFIRMAÇÃO (1789) DE JOSÉ PINTO MARTINS COMO FAMILIAR DO SANTO OFÍCIO

É possível que o pedido de José Pinto Martins como Familiar do Santo Ofício tenha ocorrido entre os meses de janeiro e fevereiro de 1781.
Em um dos dois requerimentos feitos por José Pinto Martins à Rainha, disse viver de seu negócio, ser natural da freguesia de S. Salvador de Meixomil, lugar das Portas, Comarca de Penafiel, Bispado do Porto, morador na Vila do Recife de Pernambuco e que ele, Suplicante, “deseja servir ao Santo Ofício no cargo de Familiar, havendo V. Majestade, por bem, conferir-lhe a dita graça, mandando se lhe faça as diligências do estilo”.
Ao pé da petição há uma declaração, na qual Pinto Martins diz ser irmão germano (O que procedeu do mesmo pai e da mesma mãe. Fig. Verdadeiro; puro) de João Pinto Martins, “Familiar do Santo Ofício”.
Os despachos dados, aos dois pedidos, foi o mesmo: “Depositando o Suplicante, os Inquisidores de Lisboa informem com o seu parecer”. O primeiro despacho tem a data de 27 de abril de 1781 e o outro com a data de 8 de maio de 1781.
Dando continuidade ao processo aberto, vê-se, logo a seguir, uma certidão assinada por Manoel Correa Xavier, Notário do Santo Ofício “desta Inquisição” de Coimbra, na qual dizia que o Promotor, “provendo os reportórios, neles não aclaram delito de culpa alguma a José Pinto Martins [...]”, 14 de maio de 1781.
Igual declaração e informação foi prestada por José Lopes, Notário de Évora, e o Promotor Manoel Fragoso em 18 de maio de 1781.


Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 25 de dezembro de 2011.

domingo, 18 de dezembro de 2011

RIO PIRATINI: BERÇO DA INDÚSTRIA SALADEIRIL? (3ª e última parte)*





A. F. Monquelat
V. Marcolla

Dissemos há pouco, que a charqueada estabelecida por João Cardoso se deu na área onde, até 1762, esteve instalado o antigo forte português de São Gonçalo.
Este forte, construído e guarnecido no período da expedição que Gomes Freire de Andrada fez às Missões, esteve de pé e em mãos dos portugueses até a guerra de 1762, quando, então, foi invadido e destruído.
A referência mais antiga quanto ao nome de João Cardoso e sua charqueada, nos vem de uma correspondência do sargento-maior, engenheiro D. Bernardo Lecoq dirigida a D. Manuel Cipriano de Melo, datada em Montevideo aos 4 dias do mês de novembro de 1791. Nela, Lecoq informa que em ofício de 22 de outubro do mesmo ano, o Vice-rei daquelas províncias havia lhe dito que, entre as várias prevenções relativas à Demarcação de Limites, de acordo com as Reais Ordens de 11 de julho, o Ministro de Estado, com respeito ao Piratini e os estabelecimentos portugueses em sua banda, havia lhe informado que: para conter os portugueses e apertá-los, de modo que assim não pudessem estender-se à parte do Sul, sem desalojá-los com violência dos estabelecimentos que ali, indevidamente, possuíam, enquanto não se tomassem as medidas necessárias para definir este ponto com a Corte de Lisboa, convinha que o Vice-rei fizesse construir, à moderada distância dos estabelecimentos portugueses, várias Guardas ou Postos de tropa. E que, segundo lhe havia dito o Brigadeiro da Armada Real, D. Jose Varela y Ulloa a quem havia ouvido sobre este e outros pontos relativos à Demarcação que teve a seu cargo, como Comissário Geral da 1ª Partida, poderiam ser três, repartidas de tal forma que ocupassem todo o espaço “que ha desde la charquiada antigua de Juan Cardozo*, hasta las Estancias de José Dutra*, y Bernardo Antunes*, [...]” (grifo nosso).
Acreditamos que os asteriscos colocados após o nome de cada um dos três citados na correspondência de Lecoq, não façam parte do documento original; pois, na parte inferior do referido, há, como nota de rodapé, e em português, algumas observações sobre estes.
A primeira das notas nos diz que: “A charquiada de João Cardoso está situada no idêntico lugar do Forte de São Gonçalo, [...]. O dito Forte, está fundado sobre a ribanceira meridional de um Rio, que lhe corre pelo lado do Norte, ao qual, alguns chamam de Rio São Gonçalo e outros de Piratini, que fica seis léguas antes de chegar à Lagoa Mirim; [...]”.
Sobre José Dutra é dito que é português e “tem, naquele lugar, o seu estabelecimento, assim como muitos outros portugueses [os têm] adiante dele.
Quanto ao terceiro e último dos nominados, Bernardo Antunes, diz a nota tratar-se de um Tenente da Legião que, “naquele lugar tem o seu estabelecimento dentro das vertentes daquele Rio, que uns chamam de Piratini, e outros de São Gonçalo”.
José Dutra da Silva, alferes, casado, morador no Continente do Rio Grande “e nele estabelecido com vultoso número de animais vacuns, cavalares, muares e destes, uma cria de bestas com dez burros exores”, requereu e lhe foi concedida uma sesmaria de terras, que compreendiam uma légua de frente e três de fundo, “entre o Arroio Grande e o do Chasqueiro, confrontando com a Serra do Erval, que primitivamente havia sido concedida ao tenente-coronel Vasco Pinto Bandeira, da qual tem estado de posse há muitos anos [...]”.
O pedido de carta de sesmaria, feito por José Dutra da Silva em 1789, depois de cumpridas as formalidades legais, obteve o “Passe Carta na forma das Ordens” em 17 de abril de 1790.
A Carta de Sesmaria de Bernardo Antunes não conseguimos localizar.
Prosseguindo com as referências encontradas sobre João Cardoso e sua charqueada, a próxima delas é a correspondência que o governador Sebastião Xavier de Veiga Cabral da Câmara enviou, em 17 de novembro de 1791, ao Brigadeiro Comandante do Continente, Rafael Pinto Bandeira onde, encerrando a carta, o Governador afirmava que “os estabelecimentos portugueses que existem ao Sul do Piratini, dentro das suas próprias vertentes, nem todos são tão antigos como a Estância ou Charqueada de João Cardoso, formada [estabelecida] no idêntico sítio em que, há cerca de quarenta anos, foi edificado o forte português de São Gonçalo, [grifo nosso] bastará a V. Sª. saber que a maior parte dos ditos estabelecimentos não são de seu tempo; [pois estes já existiam] muito antes de se falar em Demarcação; [...]”.
Antes de concluirmos, entendemos oportuno, por relevante, dizer que a estância de José Dutra da Silva teve importante papel para manter com segurança e evitar que os estabelecimentos portugueses (charqueadas e estâncias) não fossem desalojados pelos espanhóis; pois nela, e por questões estratégicas, Rafael Pinto Bandeira estabeleceu uma Guarda, o que lhe custou uma recriminação por parte do Governador, ao que, Rafael Pinto Bandeira justificou dizendo que: “A Guarda de São João do Erval acha-se estabelecida em terrenos que o Ilmo. Exmo. Sr. Vice-rei concedeu a José Dutra por Sesmaria; cujo título eu tenho por legítimo. Nestes termos, parece-me que a dita Guarda não está fora dos limites que V. Sª. me manda defender; porém, se é conveniente ao sossego desta Fronteira, que a dita Guarda se mude, prontamente o farei, com expressa ordem de V. Sª.; mas, devo dizer, que todas as partidas [grupos de gente armada] espanholas que chegam àquela Guarda, trazem ordem para irem até a barra do Piratini, o que não fazem, por respeitarem a dita Guarda; mas, se ela se mudar, certamente que irão cumprir com a ordem que trazem.
Eu tenho demorado na execução dos despachos, porque V. Sª. manda dar posse às Sesmarias concedidas no Jaguarão chico e se lá forem estabelecer-se os donos dessas Sesmarias, que são vassalos portugueses, tenho eu obrigação de defendê-los e cobrí-los com Guardas, segundo as Ordens de V. Sª., e nesse caso, mais razão terá o Vice-rei de Buenos Aires de reclamar. [...]. Rio Grande de São Pedro, 12 de dezembro de 1791. Rafael Pinto Bandeira”.
Concluindo, e diante dos documentos expostos, podemos aventar duas hipóteses: uma, é a de que João Cardoso foi realmente o primeiro a instituir estabelecimento de indústria saladeiril no Continente e, ao redor de sua charqueada surgiram outras, graças “às idéias e noções necessárias” que deu aos demais; a outra, é a de que, caso venha a ser provado documentalmente que José Pinto Martins estabeleceu sua primeira charqueada no mesmo ano, o de 1780, à margem direita do Arroio Pelotas, teríamos, então, dois precursores e dois pólos saladeiris. Um na margem direita do Arroio Pelotas e outro na margem meridional do Rio Piratini; mas, até prova em contrário, João Cardoso da Silva é o pioneiro a instituir “fábrica de carnes de charque” no Continente do Rio Grande de São Pedro e, portanto, Arroio Grande, e não Pelotas, foi o berço desta indústria.


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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 18 de dezembro de 2011.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

RIO PIRATINI: BERÇO DA INDÚSTRIA SALADEIRIL? (2ª)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Foi dito pelo Vice-rei, em ofício de 21 de julho de 1785, que há muitos anos junto ao Forte português de São Gonçalo (grifo nosso), se achavam alguns estabelecimentos portugueses; e, vimos também, através da correspondência enviada pelo primeiro comissário espanhol, coronel José Varela y Ulloa, ao comissário português, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, que nas proximidades do Forte de São Gonçalo, “achou três Charqueadas e quatro Estâncias, denominadas de Muniz, Cangas, Correa e Pinto e Ferreira, situadas umas e outras na margem meridional deste Rio [Piratini]”.
Quanto às Estâncias nominadas, não conseguimos localizar a de Cangas e tampouco saber quem era; já dos outros três estancieiros, seus pedidos de Carta de Sesmaria é o que foi encontrado.

A Sesmaria de Jerônimo Muniz

Por volta do ano de 1789, Jerônimo Muniz, em petição enviada ao Vice-rei do Brasil, disse ser morador no Continente do Rio Grande de São Pedro e que havia povoado uns campos nas caídas do Piratini, do erval para dentro, com casas, currais e mais de mil animais, entre vacuns e cavalares e que tais campos teriam três léguas de comprido e uma de largo, pouco mais ou menos; confrontando pelo Sul com a coxilha do dito erval; pelo Norte com um galho do Arroio do Piratini, que deslinda [divide] com o Capitão de Dragões, Fortunato Barbosa e o Furriel de Cavalaria Auxiliar, Joaquim Antônio de Oliveira; pelo Leste com um Arroio, que nasce do mencionado erval e deságua no Piratini; e, pelo Oeste com outro Arroio, que nasce da dita coxilha e divide as águas de uma e outra parte. E, porque o “Suplicante tem o peso de uma crescida família para sustentar, e não tem outro meio para o fazer”, senão com a produção de seus animais, portanto, pedia que lhe fosse concedida Carta de Sesmaria dos campos que estava de posse.
Com data de 9 de dezembro de 1790, o Vice-rei, desde o Rio de Janeiro, pede que o Governador do Rio Grande, depois de ouvir por escrito a Câmara e o Provedor da Fazenda Real, lhe informe a respeito do pedido de Jerônimo Muniz.
A solicitação feita pelo Vice-rei foi atendida pelo Governador, que, em 8 de julho de 1791, solicita à Câmara e ao Provedor, que venham com os seus informes.
A Câmara, em 15 de dezembro de 1792, baseada em certidão passada pelo capitão e engenheiro, José de Saldanha, certificou que o Suplicante se achava de posse do dito campo, “com licença do Brigadeiro Comandante, Rafael Pinto Bandeira, e que os referidos campos estavam dentro dos limites”.
O Provedor da Fazenda, Ignacio Ozorio, reportou-se a 18 de dezembro do mesmo ano, confirmando as informações dos Oficiais da Câmara.
À vista dos Informes dados pela Câmara e pelo Provedor da Fazenda, em 22 de abril de 1793, informou o governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, que os campos pretendidos pelo Suplicante se achavam devolutos; mas, que não compreendiam as três léguas declaradas no requerimento, e sim “duas, cuja situação, por não exceder os limites das vertentes do Rio Piratini, julgo não servir de embaraço a que o Suplicante obtenha, de V. Exª., a graça dos referidos campos”.
O passe Carta, na forma das Ordens, foi dado pelo Vice-rei, Conde de Rezende, em 27 de agosto de 1796.

A Sesmaria de Francisco Correa Pinto

Em petição enviada à Corte no ano de 1789, Francisco Correa Pinto, Capitão de Cavalaria Auxiliar da Fronteira do Rio Grande, disse que por licença do “Senhor Brigadeiro Governador atual do mesmo Continente [José Marcelino de Figueiredo], povoou uns campos do outro lado do Piratini, que terão pouco mais ou menos uma légua de frente, ao Norte, que divide o rio Piratini; e, três léguas de fundo, que divide a palma só [?]; e, pelo Leste com terras que povoou o Porta Estandarte Pedro Fagundes; e pelo Oeste com campos povoados pelo Capitão Antônio Ferreira da Silva, com os quais divide uma vertente, que vem da pedra só [?], em cujos campos têm mais de quatro mil animais vacuns e cavalares”; e, porque os queria possuir com justos títulos de Sesmaria, pedia que lhe fosse concedida a graça na forma das Ordens de Sua Majestade.
Despachou o Vice-rei, que a Câmara e o Provedor da Fazenda Real do Rio Grande viessem com seus informes por escrito, desde o Rio de Janeiro em 23 de junho de 1789.
A Câmara, em 27 de janeiro de 1790, informou que o alegado pelo Suplicante estava certo.
O Provedor, Ignacio Ozorio, informou que o Suplicante estava nas terras referidas no requerimento, e as tinha povoado com animais e benfeitorias. “É o que posso informar. Porto Alegre, 4 de fevereiro de 1790”.
A Carta de Sesmaria de Francisco Correa Pinto foi concedida em 20 de setembro de 1790 e registrada no Livro de Registro Geral a fls. 45 do mesmo dia.

A Sesmaria de Antônio Ferreira da Silva

O capitão da Cavalaria Auxiliar da Fronteira do rio Grande, Antônio Ferreira da Silva, em petição encaminhada ao Vice-rei no ano de 1789, disse que, por licença do Brigadeiro e Governador atual do Continente [José Marcelino de Figueiredo], havia povoado uns campos “nas margens do Piratini, que terão pouco mais ou menos légua e meia de frente e três de fundo, com mil e quinhentos animais vacuns e cavalares; [tais campos] pelo Sul fazem a sua frente com o rio Piratini; pelo Norte partem com campos de José Inácio [Costa]; pelo Leste com Joaquim José [da Rocha]; e, pelo Oeste com Afonso Pereira Chaves, nos quais campos têm casas, lavouras e escravos. E porque os queria possuir com justos títulos de Sesmaria”, rogava que lhe fosse concedida tal graça, na forma das Ordens de S. Majestade.
O Vice-rei, em 30 de junho de 1789, pediu que a Câmara e o Provedor viessem com seus informes.
Informou a Câmara, em sessão de 26 de setembro do mesmo ano, “que o Suplicante está de posse dos campos, e neles têm seus animais”.
O Provedor, em 5 de novembro de 1789, informou que os campos pretendidos pelo Suplicante estavam povoados com animais e benfeitorias, o que havia sido comprovado naquela Provedoria.
Antônio Ferreira da Silva recebeu o “Passe Carta na forma das Ordens”, em 13 de abril de 1790.
Vimos, através dos pedidos de sesmaria feitos por 3 dos 4 estancieiros nominados no documento espanhol, outros nomes de sesmeiros confrontantes; desses, por ora, não nos ocuparemos.
Quanto às três charqueadas citadas no referido documento, não há qualquer indício quanto ao nome de seus proprietários. Sabemos apenas que eram pelo menos três e estavam localizadas na mesma margem: a margem meridional do Rio Piratini.
Considerando a época, é possível supor que das três charqueadas ali localizadas, a mais antiga fosse a de João Cardoso da Silva; pois, como logo veremos, João Cardoso estabeleceu sua charqueada na área das ruínas do Forte de São Gonçalo, distante uma légua e meia do Sangradouro da Mirim (ou São Gonçalo); área posteriormente solicitada por sesmaria, cujo requerente, Teodósio Pereira Jacome, tivera uma sociedade de charqueada com o próprio João Cardoso da Silva e que, segundo informações prestadas por autoridades naquele período, tais campos lhe couberam quando dissolvida a sociedade entre eles.
Acreditamos que a sociedade entre João Cardoso e Teodósio Pereira Jacome tenha acontecido já no início do estabelecimento da charqueada que ali tiveram; mas, isso não conseguimos documentar.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 11 de dezembro de 2011.

sábado, 10 de dezembro de 2011

RIO PIRATINI: BERÇO DA INDÚSTRIA SALADEIRIL? (1ª)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

Sim, se considerarmos a afirmação feita por João Cardoso da Silva, quando nos diz ser “um dos mais antigos colonos existentes nesta Capitania; que foi o primeiro que estabeleceu aqui a fábrica de charques, trazendo, para isso, mestres a sua custa, no ano de 1780”, como verdadeira.
Considerando que o dito por João Cardoso foi confirmado pelo Comandante Militar da Fronteira, Manoel Marques de Souza e outras autoridades envolvidas na retomada do território continentino, dela não nos cabe outra alternativa, que não a de aceitá-la como verdadeira. Portanto, foi João Cardoso, personagem de Simões Lopes Neto em um de seus Contos Gauchescos, o primeiro a estabelecer “fábrica de charques” no Continente de São Pedro.
A afirmação feita por João Cardoso não é muito clara nem rica em detalhes, que hoje nos seriam valiosos, pois deixa-nos a dúvida se a fábrica de charques foi estabelecida antes de 1780 e os mestres é que vieram neste ano, ou tanto um acontecimento quanto o outro foram simultâneos.
De qualquer forma, temos dois fatos importantes: João Cardoso foi o primeiro a estabelecer charqueada no Continente e o ano, foi 1780.
Vejamos o que mais disse João Cardoso em outro documento: “que o Suplicante é um vassalo benemérito, pelos bons serviços que tem prestado a Sua Alteza Real; que não tem outras terras, senão aquelas quatro léguas e meia compradas e que é um dos mais antigos colonos deste Continente, que em grande parte lhe deve o seu aumento e auge em que se acha, por ter sido ele [João Cardoso] o primeiro que instituiu aqui [no Continente] a fábrica de carnes de charque, dando aos [de]mais as idéias e noções necessárias para um ramo tão vantajoso ao Estado o que é bem conhecido de V. Ex.ª”.
Há também um terceiro documento, em que João Cardoso, a certa altura, afirma, novamente, ser ele “um dos mais antigos colonos deste Continente [e] o primeiro que nele, à minha custa, erigi Fábrica de Charque, que tanto tem cooperado para o seu aumento [crescimento; desenvolvimento]”.
Em trabalho recente, “João Cardoso: dos contos Gauchescos para a História”, trabalho este que será publicado, na íntegra, no Almanaque do Bicentenário de Pelotas, tratamos do sesmeiro e agro-pecuarista João Cardoso; neste artigo, estamos acrescentando outras informações sobre o pioneiro da indústria saladeiril no Continente de São Pedro.
Dentre as peças que compuseram os “Autos principais do Conselho de Guerra do Coronel Rafael Pinto Bandeira”, remetidos pelo governador do Continente, José Marcelino de Figueiredo ao Vice-rei, Luiz de Vasconcelos e Souza, aparece o nome de João Cardoso em dois momentos, como uma das testemunhas citadas e inquiridas.
No primeiro deles, é dito que a “Testemunha João Cardoso da Silva, soldado da 3ª. Companhia da Cavalaria Ligeira, a folhas 13, diz que [re]tirara o Comandante 30 ou 40 poldros [potros]”.
Já, em depoimento bem mais longo, e que João Cardoso é nominado em 11ª. testemunha, “jurada aos Santos Evangelhos em que pôs a sua mão direita” prometendo dizer a verdade, disse ter de idade 26 anos.
Bem, considerando que o depoimento de João Cardoso da Silva foi tomado em 14 de dezembro de 1778, podemos ter o ano de 1752 como provável ano de seu nascimento.
Prosseguindo na leitura do depoimento, disse João Cardoso “que marchando da Encruzilhada com a sua tropa Ligeira, uma Companhia de Dragões e alguns auxiliares, sendo ao todo uns cento e tantos praças, tendo por Comandante de todo o Corpo o sargento-mor Rafael Pinto Bandeira, em direção à Estacada e ao Acampamento de São Martinho, aonde se encontravam os espanhóis, [...]”; deixamos de reproduzir o resto do depoimento por não trazer elementos relevantes a este artigo.

As Estâncias e Charqueadas da Margem Meridional (Sul) do Rio Piratini

Com o propósito de reforçar nossa tese de que o pioneirismo no estabelecimento das charqueadas, no Continente de São Pedro do Sul, deu-se à margem do rio Piratini, mais precisamente no território onde esteve localizado o antigo forte português denominado de São Gonçalo, região compreendida nos limites do hoje município de Arroio Grande, é que fazemos aqui o aporte de alguns documentos, acreditando que estes possam dar maior clareza e visibilidade ao que estamos afirmando.
Em 21 de julho de 1785, Luís de Vasconcelos e Souza, Vice-rei do Brasil, em ofício endereçado ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, dava notícias quanto à reclamação do primeiro comissário espanhol, coronel José Varela y Ulloa, na qual o referido comissário pedia para que fossem desalojados os portugueses instalados na margem meridional do Rio Piratini.
Dizia, o Vice-rei, que a proposta, ou “reclamação”, era injusta, escandalosa e feita por quem “não tem autoridade e jurisdição para a pretender” e baseava-se na simples notícia que lhe dera D. Diogo de Albear, “seu segundo comissário, de que na margem meridional do Rio Piratini, se achavam alguns estabelecimentos portugueses” e por isso pretendiam que aqueles moradores fossem desalojados imediatamente daqueles terrenos, com o gado e outros animais que ali possuíam; moradores estes, disse o Vice-rei português, “que não podendo subsistir noutro lugar ali se conservam tranqüilamente há muitos anos junto ao Forte português de São Gonçalo” (grifo nosso).
Na continuidade do ofício, entendia o Vice-rei que aquela matéria não deveria ser tratada daquele modo e nem resolvida de forma rápida, ainda que a posse daqueles terrenos se achasse duvidosa e pendente da resolução das duas Cortes; “mas, como ainda no caso de haver alguma probabilidade de que a referida margem meridional, da Lagoa Mirim, fosse pertencente à Espanha, não se devia, antes do Tratado Definitivo dos Limites, conferir aos espanhóis o domínio de semelhantes terrenos, como eles têm pretendido em outras Demarcações”.
A reclamação do comissário espanhol, José Varela y Ulloa, ao nosso comissário para a Demarcação dos Limites, Sebastião Xavier de Veiga Cabral da Câmara, foi feita desde o Campo do Taim, aos seis dias do mês de março do ano de 1785 e, por tratar-se de um importante documento, com muitas informações sobre as áreas em disputa pelas duas Coroas, resolvemos, em tradução livre, transcrevê-la na íntegra: “Meu muito Senhor. No artigo 4º do Tratado Preliminar de Limites, se estabelece a linha divisória pelo Arroio do Taim, seguindo pelas margens da Lagoa da Mangueira, em linha reta até o Mar; e, se diz depois, que pela parte do Continente irá a linha desde as margens da dita Lagoa Mirim, tomando a direção pelo primeiro Arroio meridional, que entra no Sangradouro, ou desaguadouro dela, e que corre pelo mais imediato ao Forte português de São Gonçalo, cujas expressões manifestam clara e evidentemente, como fiz ver a V. Sª. em carta de 25 de março do ano próximo passado [1784], que desde a boca do Taim deve continuar se a linha pelas margens da referida Lagoa e das de seu Sangradouro, até encontrar o Arroio deque se trata o expressado artigo 4º.
Neste conceito, e de que as dúvidas de V. Sª. só giravam sobre, se é ou não o Piratini, o Arroio em questão, propus a V. Sª., em Ofício de 1º de fevereiro último, que havendo se reconhecido já o Sangradouro da Lagoa Mirim e toda a sua costa oriental, seria conveniente assinalar o espaço, ou terreno, pertencente a Coroa de Portugal, com alguns marcos colocados nos pontos mais visíveis dele, ao qual me contestou V. Sª. em carta de 25 do mesmo mês, declarando-me que esta parte da Demarcação pendia da resolução de Suas Majestades Católica e Fidelíssima; e que, por esta razão, não se podia continuar ou concluir.
À vista disto e de que já tenho feito a V. Sª. os correspondentes protestos, sobre a má inteligência que dá aos artigos 3º e 4º do Tratado Preliminar, só me resta dizer que, nos poucos dias que o tenente de navio, D. Diego Albear esteve acampado junto às ruínas do Forte de São Gonçalo, reconheceu o curso do Piratini pelo espaço de 7 ou 8 léguas, em cuja distância achou três Charqueadas e quatro Estâncias, denominadas de Muniz, Cangas, Correa e Pinto e Ferreira [grifo nosso], situadas umas e outras na margem meridional deste Rio; isto é, dentro dos limites da Coroa da Espanha, fundando-se que o Piratini deve servir de limite aos domínios de ambas Nações, por ser o primeiro Arroio Meridional, que entra no Sangradouro da Lagoa Mirim e que corre de imediato ao forte português de São Gonçalo.
V. Senhoria compreenderá que eu não posso ficar indiferente a uma possessão tão injusta e contrária ao artigo 4º do Tratado Preliminar; portanto, requeiro a V. Sª., na forma que me corresponde e devo fazê-lo, para que mande desocupar aqueles terrenos, nos quais não pode haver estabelecimento algum, até que as Cortes esclareçam e resolvam, de comum acordo, todas as nossas dúvidas. [...]”.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 4 de dezembro de 2011.

domingo, 4 de dezembro de 2011

HISTÓRIA: Hora de corrigir teses, artigos e livros escolares


Erro de João Simões Lopes Neto gerou o mito. Mas, José Pinto Martins não era cearense, tampouco fundou a primeira charqueada

 Por Carlos Cogoy

            Pelotas deve seus primórdios a dois fatos: a ocupação castelhana de parte do território do Continente; e ao assentamento dos “Cazaes” feito pelo governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara. A importância de José Pinto Martins para o desenvolvimento da indústria saladeril no Continente do Rio Grande é um mito. A charqueada fundada no ano de 1780 é outro mito. A história da cidade de Pelotas está, desde muito, precisando de um novo olhar e de novas interpretações. Interpretações com menos equívocos e sem mitos. As afirmações são de Adão Fernando Monquelat e Valdinei Marcolla (V. Marcolla), na conclusão do artigo “Pinto Martins – O mito de um século”, publicado no Diário da Manhã a 4 de setembro deste ano. Os autores há bom tempo tem revirado arquivos no Estado, Uruguai, Argentina e até Europa. Como resultado, descobertas que tem sido publicadas regularmente no DM. Os artigos foram reunidos em livros. Monquelat publicou “Notas à margem da história da escravidão” (2009), e “Senhores da Carne” (2010). Já Monquelat e Marcolla lançaram "O Desbravamento do sul e a ocupação castelhana" e "O processo de urbanização de Pelotas e a fazenda do Arroio Moreira" em  2010.
  MITO – Para Monquelat e Marcolla, a origem do mito – José Pinto Martins como “cearense” que fundou a primeira charqueada em 1780 -, reside na Revista do Centenário (1911/12), autoria do escritor João Simões Lopes Neto (1865/1916). Monquelat ressalta a qualidade literária do autor de “Lendas do Sul”, mas também identifica o equívoco de Simões. E observou que Simões não foi questionado sobre a fonte na qual teria encontrado o ano de 1780 para a primeira charqueada. Em 1922, Fernando Osório reiterou o erro na obra “A Cidade de Pelotas”. Mencionando artigo de Paulo Xavier no Correio do Povo em 1971, Monquelat lista mais três fontes que repetiram o erro: “Retrospecto econômico e financeiro do RS” de 1922; Dicionário biobliográfico, autoria do Barão de Studart e publicado no Ceará em 1913; Renato de Almeida Braga – ex-diretor da Escola de Agronomia do Ceará.

            PESQUISA de Monquelat e Marcolla identificou que a primeira menção a José Pinto Martins está em documento de 1796. Já a primeira charqueada é atribuída a João Cardoso da Silva – o ‘João Cardoso’ do conto consagrado de Simões Lopes. Outro aspecto é que, nos primórdios do Rio Grande, a base econômica na região não era a charqueada mas o “agro-pastoreio”. Em destaque, frisa Monquelat, o trigo cultivado com braço escravo. Para reunir as informações que contestam a história oficial, pesquisadores recorreram ao Arquivo de Las Índias na Espanha, Arquivo e Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo do Conselho Ultramarino em Portugal, Archivo General de La Nación em Buenos Aires.


Desfazendo mitos
será a nova obra

            Até abril de 2012, Monquelat e Marcolla estarão lançando novo livro. Trata-se de “Desfazendo mitos – Notas à história do Continente de São Pedro”. No volume, 22 artigos. Alguns versando sobre a “urbe”  Pelotas. Monquelat acrescenta: “A sesmaria Monte Bonito é chave para compreender a cidade de Pelotas”. Mas a maioria dos artigos, diz o autor, será sobre o charque e as charqueadas. Seis textos abordarão sobre o cólera – em especial o número de vítimas. Os três últimos focalizarão temas diversos. Conforme Monquelat, dois são “fundamentais e justificam o título”.

            POLÊMICA – O autor destaca o artigo “Rio Piratini: berço da indústria saladeril?”. “É a história de um soldado da cavalaria ligeira – nascido em 1752 -, João Cardoso da Silva, personagem de Simões Lopes Neto”. O outro texto “E agora José? Ou José e seus irmãos ou os Irmãos Pinto Martins”, baseia-se nas memórias do vereador Manoel Esteves Almeida D’Almeida de Aracati no Ceará. Trata-se das peripécias dos irmãos portugueses Pinto Martins.  O livro terá apresentação do prof. dr. Luis Rubira (UFPel). Textos tem sido compartilhados por Monquelat e Marcolla. Basta acessar: povoamentodepelotas.blogspot.com


Arroio Grande sediou a primeira
charqueada no século dezoito


            Vestígios históricos indicam que a prática de “charquear”, remonta às primeiras décadas do século 18. Conforme Adão Monquelat, tropeiros e “lagunistas” secavam a carne para dispor do alimento nos deslocamentos. Eram “nômades”, que usavam o charque para sobreviver. Portanto, não havia produção visando o lucro.

            HISTÓRIA – O pesquisador também menciona que os indígenas tinham o preparo do “charqui”. A carne secava ao sol, sem adição de sal. Em carta de Gomes Freire de Andrada, datada de 1737, há menção ao “charque”. Em 1752 na vila do Rio Grande, conforme documentação, estância tinha a designação “Charquiada”. Ao fim do século 18, o charque está na Colônia Sacramento. Em 1787, espanhóis descobrem o “segredo” para a conservação da carne. Os experts eram os irlandeses, que abasteciam as Armadas de Portugal e Espanha, com as carnes em barris. De acordo com Monquelat, citando a “História das Missões Orientais do Uruguai” de Aurélio Porto, em “1700 Laguna exportava charque fabricado no Rio Grande”. Os dados, diz ele, em relação ao Continente do Rio Grande, comprovam que não foi José Pinto Martins que iniciou a charqueada na região. Outro fato é que as primeiras charqueadas não foram em Pelotas, mas em território que atualmente pertence ao município do Arroio Grande.

            JOÃO CARDOSO – No Conto de Simões “O mate de João Cardoso”, há referência ao Passo da Maria Gomes. O local seria para os “lados da Forqueta Grande do Piratini”. A indicação coincide com documentos, que apontam para charqueadas nas proximidades do Forte do São Gonçalo, que existiu até 1762. Adão transcreve trecho de documento: “Suplicante (...) [João Cardoso], o primeiro que instituiu, aqui, a fábrica de carnes de charque, dando aos demais as ideias e noções necessárias para o [desenvolvimento] de um ramo tão vantajoso ao Estado e bem comum, o que é conhecido por V. Exa.”. Noutro documento, afirma ser “um dos mais antigos colonos deste Continente, o primeiro que nele, à minha custa, erigi Fábrica de Charque, que tanto tem cooperado para o seu aumento” (crescimento, desenvolvimento). Em 1785, comissário espanhol José Varela y Ulloa, reclamava ao Vice-Rei Luís de Vasconcelos e Souza, que portugueses estariam em terras da Espanha. Trecho: “(...) junto às ruínas do Forte de São Gonçalo, reconheceu o curso do Piratini pelo espaço de 7 ou 8 léguas, em cuja distância achou três charqueadas e quatro Estâncias, denominadas de Muniz, Cangas, Correa e Pinto e Ferreira, situadas umas e outras na margem meridional deste Rio”.



Irmãos Pinto Martins
de Portugal para cá


            José Pinto Martins nasceu na freguesia do Meixemel em Portugal. O primeiro registro dele no Continente do Rio Grande, é bem posterior ao alegado 1780. Em 1796, Pinto Martins é um dos que assinam uma representação à “Sua Majestade”, clamando por sal para tocar as charqueadas. De acordo com Monquelat, não há prova documental da presença entre 1780 e 1795. Aliás, em 1787, José Pinto Martins então em Recife, entra com pedido para ser “Familiar de Santo Ofício”. Para participar, espécie de “espião” da Igreja, requisitos como ser “puro de sangue, nem negro, mulato ou judeu”. Já o sal, em 1800 passou a ser liberado para os charqueadores do sul.

            OPULÊNCIA – Com base no trabalho “A Saga dos Pinto Martins”, autoria do prof. dr. Antonio Otaviano (UFPA), Monquelat cita a trajetória dos quatro irmãos portugueses. Os pais perderam propriedades em Portugal, tornando-se caseiros. Com isso, o irmão mais velho João chega ao Brasil com dez anos. Pobre, aos dezesseis casa com a cunhada de comerciante e charqueador. Torna-se sócio do comércio. Abastado, manda vir o irmão Bernardo. Alem de charqueadores, também tem loja em Aracati, e transportam sal na rota Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco. Ricos, recebem os irmãos José e Antônio.

            DECADÊNCIA – Numa briga com negro, Bernardo é esfaqueado e morre. Naquele mesmo ano também morre João. As viúvas não tem interesse em seguir com os negócios, e o patrimônio é liquidado. Os irmãos mais novos, dedicam-se à rota para o transporte do sal. Entre 1789 e 1790, José e Antônio chegaram ao Rio Grande. Por aqui, somente após a Revolução Farroupilha é que se constitui um “pólo saladeril”.

            HISTÓRIA – Em dezembro, Monquelat e Marcolla estarão publicando novos artigos no DM. Eles salientam: “A história de uma cidade é a história de uma comunidade; e não, a história de uma elite. A história de uma cidade não é a história de seus barões, saraus, doces e licores. A história de Pelotas precisa ser espremida, é preciso fazê-la ranger”.

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* Matéria publicada no Jornal Diário da Manhã, no dia 29 de novembro de 2011.