A.
F. Monquelat
V.
Marcolla
O
estabelecimento da indústria saladeiril, até então, vem sendo
atribuído pela historiografia local e regional ao português José
Pinto Martins, que teria, no ano de 1780, instalado às margens do
arroio Pelotas uma charqueada.
Tal
informação nos foi deixada, por primeira vez, em 1912, quando
Simões Lopes Neto divulgou sua Revista
do 1º Centenário de Pelotas;
e daí em diante não cessou de se propagar, surpreendentemente,
despida de qualquer prova documental e, assim mesmo, até hoje
sobrevive.
Ainda
que irrelevante para alguns, mas não menos pertinente a outros,
entendemos necessário que se faça aqui uma breve distinção entre
o ato de charquear e o estabelecimento das charqueadas.
É
por demais evidente que muitos homens na ocupação e formação do
território do Continente de São Pedro praticaram, por necessidade,
o ato de charquear; entretanto, isto não os tornou ou torna
charqueadores.
Não
fosse assim, a indústria saladeiril no Rio Grande do Sul teria
florescido nos primórdios do seu desbravamento; e isto nos levaria à
primeira década do século XVIII. Daí fazermos a distinção entre
o charquear e o estabelecer charqueada.
O
primeiro, já o dissemos, foi praticado por necessidade, de forma
casual e nômade. O outro, com o propósito fixo e de lucro
comercial.
Embora
não haja prova documental alguma sobre a presença do charqueador
José Pinto Martins nos anos em que dizem ter ele instalado sua
charqueada, 1779-1780, vamos admitir que tal tenha ocorrido. Aí,
podemos trabalhar com duas hipóteses: a primeira, é a de que
houvesse se arranchado, por favor ou arrendamento, nas terras do
capitão Inácio Antônio da Silveira (Fazenda do Monte Bonito), e
ali instalado sua charqueada; a outra, menos provável, é a de que
tenha se instalado no local destinado para Logradouro Público.
Que
José Pinto Martins esteve entre nós, não há dúvida alguma. A
pergunta é: desde quando e onde?
O
primeiro sinal da presença de Pinto Martins no Continente de São
Pedro, nos parece ter sido o por nós apontado, quando da publicação
do artigo “Apontamentos para uma história do charque no Continente
de São Pedro”, de nº 12, onde o encontramos em 1º de outubro de
1796, assinando, junto a outros moradores do Continente, uma
Representação a Sua Majestade clamando por sal, para que pudessem
praticar as suas charqueações.
Durante
anos de estafante pesquisa, não conseguimos encontrar nas mais
diversas fontes e arquivos consultados, o menor indício da presença
de José Pinto Martins entre nós no espaço temporal dos anos de
1780 a 1795; o que, por outro lado, não significa que aqui não
tenha estado; e sim, que até hoje não existe a menor prova
documental de sua presença ou do estabelecimento de charqueada em
1780, no Continente.
No
entanto, e para nossa surpresa, foi o próprio João Simões Lopes
Neto quem nos deu a pista para que chegássemos ao pioneiro, segundo
palavras do mesmo, da indústria saladeiril do Continente de São
Pedro.
“Vancê
nunca ouviu falar do João Cardoso?... Não?... É pena.
O
João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios do Passo da
Maria Gomes; bom velho, muito estimado, mas chalrador como trinta e
que dava um dente por dois dedos de prosa, e mui amigo de novidades.”
Vancê
agora lembrou? Pois bem, é sobre este João Cardoso, que Simões
Lopes Neto eternizou através de um de seus contos, O
Mate do João Cardoso,
que pedimos licença para falar.
O
nome por inteiro deste “bom velho”, era João Cardoso da Silva.
Foi um sujeito importante, dono de muitos escravos e senhor de muitas
terras, que viveu lá para os lados da Forqueta Grande do Piratini.
Dizem
que ainda hoje há vestígios, naquelas bandas, do “Rancherio do
João Cardoso”. Houve também por lá, em algum lugar de suas
terras, o “Paço Geral do João Cardoso”; mas desse, não sobrou
rastro. “Também... naquele tempo não havia jornais, e o que se
ouvia e se contava ia de boca em boca, de ouvido para ouvido”;
menos mal, podia não ter sobrado história alguma sobre o mate que
não vinha: “Oh crioulo, olha o mate!”.
Enquanto
o mate não vem, vamos aproveitar para falarmos um pouco sobre o João
Cardoso na história do Continente.
A
primeira vez que topamos com o nome de João Cardoso foi quando de
nosso trabalho sobre o Povoamento de Pelotas, onde, ao escrevermos
sobre a história da Sesmaria do Forte de São Gonçalo, dissemos a
certa altura: “Por informação do Sargento-mor Francisco Pires
Cazado, consta-nos estar o Suplicante estabelecido por compra que fez
dos ditos campos, ou por lhe tocar como ajuste de uma Sociedade que
teve com João Cardoso”.
A
informação prestada pelo sargento-mor Francisco Pires Cazado
(marido de Mariana Eufrásia da Silveira), atendia ao pedido da
Câmara de Porto Alegre, cujo propósito era o de satisfazer a ordem
do Vice-rei que, por sua vez, pretendia atender ao pedido de Sesmaria
requerido pelo charqueador Teodósio Pereira Jacome, o qual informara
ao Vice-rei, quando da solicitação, “que a ele, suplicante,
concederam uns campos de que se acha de posse, e neles fazendo suas
charqueadas”.
Embora
nossas atenções estivessem voltadas para o sesmeiro charqueador,
Teodósio Jacome, não pudemos, em vista do nome de João Cardoso,
deixar de fazer um comentário: “Bem que este João Cardoso poderia
ser o João Cardoso do Simões Lopes Neto”.
“Oh!
Crioulo!... olha esse mate, diabo!”
Logo
a seguir, e ainda no mesmo trabalho, transcrevemos um texto que a
certa altura diz que: “outro despacho semelhante aos estabelecidos,
e do mesmo Marechal Governador, mas também dos dois campos
circunvizinhos, pertencentes ao Suplicante, apegando-se a uma posse
que teve, por licença do mesmo Marechal Governador, para xarquiar
duas mil reses com seu Sócio João Cardoso da Silva”; se, por um
lado acrescentamos ao nome de João Cardoso, o da Silva, por outro,
perdemos o rastro do João Cardoso.
Daí,
resolvemos reler o conto de Simões Lopes Neto, e lá estava uma
pista: “O João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios
do Passo da Maria Gomes”; ora, no Rio Grande do Sul se dava o nome
de Passo ao lugar onde se atravessa um rio; passagem, e o nosso João
Cardoso da Silva andou charqueando com seu sócio, Teodósio Pereira
Jacome, no campos da região do forte de São Gonçalo, “que partem
pelo Norte com o rio Piratini”; e como ainda hoje é sabido que o
Passo da Maria Gomes é lá para as bandas do Piratini,
descobríssemos nós quem era a Maria Gomes, e estaríamos novamente
nas pegadas do João Cardoso.
Bem,
mas quem era Maria Gomes? A mulher do Gomes? A filha do Gomes? A
viúva do Gomes? Uma dateira? Uma sesmeira?
Pergunta
daqui... indaga dali... chegamos a uma história de que a tal Maria
Gomes, mulher do Manoel Gomes, indo banhar-se no tal Passo, morreu
afogada.
A
partir desta história, saímos atrás do Manoel Gomes; e descobrimos
que lá por aqueles meios, havia ele comprado uns campos do capitão
José de Azevedo Marques, o qual, tais campos, tinha apenas a
concessão e posse. Esses campos, concedidos pelo Governador do
Continente, José Marcelino de Figueiredo, eram sitos juntos ao Serro
Pelado, dividindo-se pelo Norte com os campos do capitão Simão
Soares da Silva; pelo Sul, com os do tenente-coronel Manoel Marques
de Souza; pelo Leste, com os de Luiz Marques; e pelo Oeste, com o rio
Piratini; os quais, “teriam pouco mais de uma légua de frente e
duas de fundo”.
É
melhor darmos uma encurtada nesta história, para evitar que o leitor
diga que isto está ficando que nem o mate do João Cardoso, até
porque, o texto completo, João
Cardoso: dos Contos Gauchescos para a História,
estará divulgado quando do lançamento do Almanaque
do Bicentenário de Pelotas;
agora então, o leitor que dê licença que precisamos ter dois dedos
de prosa e tentar tomarmos um amargo com o “bom velho [e] muito
estimado João Cardoso”.
-
Bueno seu João Cardoso, e quais são as novidades?
“Oh!
crioulo! Traz mate!”
Depois
do que, a prosa se estendeu e correu no tempo, “como água de sanga
cheia”.
Dentre
as inúmeras façanhas e novidades, que ficamos sabendo a respeito de
João Cardoso, foi a de que “o Suplicante é um vassalo benemérito,
pelos bons serviços que tem prestado a S. A. Real; que não tem
outras terras senão aquelas quatro léguas e meia compradas; sendo
um dos mais antigos colonos deste Continente, que em grande parte lhe
deu o seu aumento e auge em que se encontra, por ter sido ele, [João
Cardoso], o primeiro que instituiu, aqui, a fábrica de carnes de
charque, dando aos demais as idéias e noções necessárias para o
[desenvolvimento] de um ramo tão vantajoso ao Estado e bem comum, o
que é conhecido por V. Exª., [...]”.
A
afirmação feita por João Cardoso, quanto a ter sido ele o primeiro
que instituiu, aqui, a fábrica de carnes de charque, dando aos
demais as idéias necessárias, foi confirmada pelas autoridades da
época; diante disso nos indagamos: Pinto Martins ou João Cardoso?
“Oh!
crioulo!... olha esse mate, diabo!”
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Nota:
Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente
atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 20 de outubro de 2011.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 20 de outubro de 2011.
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