sábado, 15 de outubro de 2011

PINTO MARTINS OU JOÃO CARDOSO?*




A. F. Monquelat
V. Marcolla

O estabelecimento da indústria saladeiril, até então, vem sendo atribuído pela historiografia local e regional ao português José Pinto Martins, que teria, no ano de 1780, instalado às margens do arroio Pelotas uma charqueada.
Tal informação nos foi deixada, por primeira vez, em 1912, quando Simões Lopes Neto divulgou sua Revista do 1º Centenário de Pelotas; e daí em diante não cessou de se propagar, surpreendentemente, despida de qualquer prova documental e, assim mesmo, até hoje sobrevive.
Ainda que irrelevante para alguns, mas não menos pertinente a outros, entendemos necessário que se faça aqui uma breve distinção entre o ato de charquear e o estabelecimento das charqueadas.
É por demais evidente que muitos homens na ocupação e formação do território do Continente de São Pedro praticaram, por necessidade, o ato de charquear; entretanto, isto não os tornou ou torna charqueadores.
Não fosse assim, a indústria saladeiril no Rio Grande do Sul teria florescido nos primórdios do seu desbravamento; e isto nos levaria à primeira década do século XVIII. Daí fazermos a distinção entre o charquear e o estabelecer charqueada.
O primeiro, já o dissemos, foi praticado por necessidade, de forma casual e nômade. O outro, com o propósito fixo e de lucro comercial.
Embora não haja prova documental alguma sobre a presença do charqueador José Pinto Martins nos anos em que dizem ter ele instalado sua charqueada, 1779-1780, vamos admitir que tal tenha ocorrido. Aí, podemos trabalhar com duas hipóteses: a primeira, é a de que houvesse se arranchado, por favor ou arrendamento, nas terras do capitão Inácio Antônio da Silveira (Fazenda do Monte Bonito), e ali instalado sua charqueada; a outra, menos provável, é a de que tenha se instalado no local destinado para Logradouro Público.
Que José Pinto Martins esteve entre nós, não há dúvida alguma. A pergunta é: desde quando e onde?
O primeiro sinal da presença de Pinto Martins no Continente de São Pedro, nos parece ter sido o por nós apontado, quando da publicação do artigo “Apontamentos para uma história do charque no Continente de São Pedro”, de nº 12, onde o encontramos em 1º de outubro de 1796, assinando, junto a outros moradores do Continente, uma Representação a Sua Majestade clamando por sal, para que pudessem praticar as suas charqueações.
Durante anos de estafante pesquisa, não conseguimos encontrar nas mais diversas fontes e arquivos consultados, o menor indício da presença de José Pinto Martins entre nós no espaço temporal dos anos de 1780 a 1795; o que, por outro lado, não significa que aqui não tenha estado; e sim, que até hoje não existe a menor prova documental de sua presença ou do estabelecimento de charqueada em 1780, no Continente.
No entanto, e para nossa surpresa, foi o próprio João Simões Lopes Neto quem nos deu a pista para que chegássemos ao pioneiro, segundo palavras do mesmo, da indústria saladeiril do Continente de São Pedro.
Vancê nunca ouviu falar do João Cardoso?... Não?... É pena.
O João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios do Passo da Maria Gomes; bom velho, muito estimado, mas chalrador como trinta e que dava um dente por dois dedos de prosa, e mui amigo de novidades.”
Vancê agora lembrou? Pois bem, é sobre este João Cardoso, que Simões Lopes Neto eternizou através de um de seus contos, O Mate do João Cardoso, que pedimos licença para falar.
O nome por inteiro deste “bom velho”, era João Cardoso da Silva. Foi um sujeito importante, dono de muitos escravos e senhor de muitas terras, que viveu lá para os lados da Forqueta Grande do Piratini.
Dizem que ainda hoje há vestígios, naquelas bandas, do “Rancherio do João Cardoso”. Houve também por lá, em algum lugar de suas terras, o “Paço Geral do João Cardoso”; mas desse, não sobrou rastro. “Também... naquele tempo não havia jornais, e o que se ouvia e se contava ia de boca em boca, de ouvido para ouvido”; menos mal, podia não ter sobrado história alguma sobre o mate que não vinha: “Oh crioulo, olha o mate!”.
Enquanto o mate não vem, vamos aproveitar para falarmos um pouco sobre o João Cardoso na história do Continente.
A primeira vez que topamos com o nome de João Cardoso foi quando de nosso trabalho sobre o Povoamento de Pelotas, onde, ao escrevermos sobre a história da Sesmaria do Forte de São Gonçalo, dissemos a certa altura: “Por informação do Sargento-mor Francisco Pires Cazado, consta-nos estar o Suplicante estabelecido por compra que fez dos ditos campos, ou por lhe tocar como ajuste de uma Sociedade que teve com João Cardoso”.
A informação prestada pelo sargento-mor Francisco Pires Cazado (marido de Mariana Eufrásia da Silveira), atendia ao pedido da Câmara de Porto Alegre, cujo propósito era o de satisfazer a ordem do Vice-rei que, por sua vez, pretendia atender ao pedido de Sesmaria requerido pelo charqueador Teodósio Pereira Jacome, o qual informara ao Vice-rei, quando da solicitação, “que a ele, suplicante, concederam uns campos de que se acha de posse, e neles fazendo suas charqueadas”.
Embora nossas atenções estivessem voltadas para o sesmeiro charqueador, Teodósio Jacome, não pudemos, em vista do nome de João Cardoso, deixar de fazer um comentário: “Bem que este João Cardoso poderia ser o João Cardoso do Simões Lopes Neto”.
Oh! Crioulo!... olha esse mate, diabo!”
Logo a seguir, e ainda no mesmo trabalho, transcrevemos um texto que a certa altura diz que: “outro despacho semelhante aos estabelecidos, e do mesmo Marechal Governador, mas também dos dois campos circunvizinhos, pertencentes ao Suplicante, apegando-se a uma posse que teve, por licença do mesmo Marechal Governador, para xarquiar duas mil reses com seu Sócio João Cardoso da Silva”; se, por um lado acrescentamos ao nome de João Cardoso, o da Silva, por outro, perdemos o rastro do João Cardoso.
Daí, resolvemos reler o conto de Simões Lopes Neto, e lá estava uma pista: “O João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios do Passo da Maria Gomes”; ora, no Rio Grande do Sul se dava o nome de Passo ao lugar onde se atravessa um rio; passagem, e o nosso João Cardoso da Silva andou charqueando com seu sócio, Teodósio Pereira Jacome, no campos da região do forte de São Gonçalo, “que partem pelo Norte com o rio Piratini”; e como ainda hoje é sabido que o Passo da Maria Gomes é lá para as bandas do Piratini, descobríssemos nós quem era a Maria Gomes, e estaríamos novamente nas pegadas do João Cardoso.
Bem, mas quem era Maria Gomes? A mulher do Gomes? A filha do Gomes? A viúva do Gomes? Uma dateira? Uma sesmeira?
Pergunta daqui... indaga dali... chegamos a uma história de que a tal Maria Gomes, mulher do Manoel Gomes, indo banhar-se no tal Passo, morreu afogada.

A partir desta história, saímos atrás do Manoel Gomes; e descobrimos que lá por aqueles meios, havia ele comprado uns campos do capitão José de Azevedo Marques, o qual, tais campos, tinha apenas a concessão e posse. Esses campos, concedidos pelo Governador do Continente, José Marcelino de Figueiredo, eram sitos juntos ao Serro Pelado, dividindo-se pelo Norte com os campos do capitão Simão Soares da Silva; pelo Sul, com os do tenente-coronel Manoel Marques de Souza; pelo Leste, com os de Luiz Marques; e pelo Oeste, com o rio Piratini; os quais, “teriam pouco mais de uma légua de frente e duas de fundo”.
É melhor darmos uma encurtada nesta história, para evitar que o leitor diga que isto está ficando que nem o mate do João Cardoso, até porque, o texto completo, João Cardoso: dos Contos Gauchescos para a História, estará divulgado quando do lançamento do Almanaque do Bicentenário de Pelotas; agora então, o leitor que dê licença que precisamos ter dois dedos de prosa e tentar tomarmos um amargo com o “bom velho [e] muito estimado João Cardoso”.
- Bueno seu João Cardoso, e quais são as novidades?
Oh! crioulo! Traz mate!”
Depois do que, a prosa se estendeu e correu no tempo, “como água de sanga cheia”.
Dentre as inúmeras façanhas e novidades, que ficamos sabendo a respeito de João Cardoso, foi a de que “o Suplicante é um vassalo benemérito, pelos bons serviços que tem prestado a S. A. Real; que não tem outras terras senão aquelas quatro léguas e meia compradas; sendo um dos mais antigos colonos deste Continente, que em grande parte lhe deu o seu aumento e auge em que se encontra, por ter sido ele, [João Cardoso], o primeiro que instituiu, aqui, a fábrica de carnes de charque, dando aos demais as idéias e noções necessárias para o [desenvolvimento] de um ramo tão vantajoso ao Estado e bem comum, o que é conhecido por V. Exª., [...]”.
A afirmação feita por João Cardoso, quanto a ter sido ele o primeiro que instituiu, aqui, a fábrica de carnes de charque, dando aos demais as idéias necessárias, foi confirmada pelas autoridades da época; diante disso nos indagamos: Pinto Martins ou João Cardoso?
Oh! crioulo!... olha esse mate, diabo!”

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 20 de outubro de 2011.

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