A. F. Monquelat
V. Marcolla
“Tudo
isso parece possível, sem dúvida. Mas interessa antes de tudo que
seja verdade histórica”.
As
palavras aqui utilizadas como epígrafe são de autoria do médico,
genealogista e historiador Paulo Xavier, quando da publicação de
seu artigo, “Um Cearense Iniciador de Nossas Charqueadas?”,
publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo de 11.12.1971, p.
6.
Nesse
trabalho, com o qual dialogamos em nosso artigo “Desfazendo mitos”
(DM, 28.12.2010, p. 14), Paulo Xavier tem como propósito
desconstruir o mito de que Pinto Martins havia sido o iniciador das
charqueadas no Rio Grande do Sul.
Antes
de Paulo Xavier, Aurélio Porto em sua “História das Missões
Orientais do Uruguai” nos dava provas de que em “princípios de
1700, Laguna já exportava charque fabricado no Rio Grande”, além
de elencar várias passagens envolvendo topônimos, que remetem à
existência de atividades saladeiris no litoral do Continente de Rio
Grande nas primeiras décadas do Século XVIII.
No
entanto, nem Paulo Xavier e tampouco Aurélio Porto foram capazes de
evitar que o mito de que José Pinto Martins foi o iniciador das
charqueadas no Rio Grande do Sul, ainda em nossos dias, se mantenha
vivo.
O
nascimento de um mito se dá, quase sempre, pela ausência de
conhecimento sobre um fato. A história está repleta de mitos. Roma,
por exemplo, tem sua origem em uma loba, que teria amamentado e
criado duas crianças, Romulo e Remo; e estes, fundaram a cidade.
Isso
é uma história bonita, sem dúvida. Mas não é verdadeira; porém,
o mito, depois de estabelecido, fica tão convencido de seu status,
que não permite uma outra hipótese que lhe possa opor.
Simões
Lopes Neto, nosso escritor maior e exímio contador de casos, ao
tentar reconstruir uma história das origens da cidade de Pelotas,
legou-nos um mito. Vejamos, mais uma vez, a herança deixada por ele,
quando da divulgação da sua “Revista do 1º Centenário de
Pelotas” nos anos de 1911 e 1912: “Por 1777/80, vindo do Ceará,
aportou ao Rio Grande um homem que conhecia o fabrico da carne do
sertão [...] por um processo garantidor da sua longa conservação:
a salgação, a enxerca ou enxarque da carne. Esse obscuro
industrial, que não deixou – que saibamos – de si outra notícia,
esse, mesmo sem a consciente previsão do alcance do seu cometimento,
esse foi José Pinto Martins, a
quem cabe a precedência na fundação da futura cidade”
(grifos nossos).
E,
logo a seguir, nos diz Simões Lopes que, “Sabe-se que em 1780,
numa parte dos terrenos de Manoel Carvalho de Souza (Arroio Pelotas),
fundou José Pinto Martins, vindo do Ceará [...], uma charqueada”
(LOPES NETO, 1994, p. 17, grifo do autor).
Mais
detalhes sobre as afirmações feitas por Simões Lopes, sugerimos a
leitura de nosso artigo, “José Pinto Martins, o charque e Pelotas”
(DM, 4/5.04.2010, p. 10 e DM, 11.04.2010, p. 10).
Uma
década depois, o mito criado por Simões Lopes ganha corpo e força
na hoje clássica obra de Fernando Osório, “A Cidade de Pelotas”,
e é, onde vamos encontrar, em forma de “Adenda ao Capítulo II”,
a seguinte “Notícia biográfica – José
Pinto Martins,
natural do Ceará. – Foi o criador da indústria saladeiril no Rio
Grande do Sul. Cabe-lhe a primazia na fundação da hoje bela e
adiantada cidade de Pelotas. Em 1780
estabeleceu uma xarqueada sobre a margem direita e a cerca de uma
légua da foz do rio
das Pelotas;
[...]” (grifos do autor).
Dissemos
que o estabelecimento do mito ganhou corpo e força a partir da obra
de Fernando Osório, porque esta, hoje em 3ª edição, foi
incomparavelmente mais divulgada e consultada, do que a diminuta
tiragem e escassa circulação da “Revista” de Simões Lopes.
Entendemos
oportuno aqui deixarmos ressalvado que a intenção de nosso trabalho
não é o de apontar culpados; é, isto sim, o de buscar a origem do
mito e suas fontes de propagação.
A
obra de Simões Lopes foi escrita em uma outra época, com uma outra
metodologia e outros recursos.
De
qualquer forma, deixou-nos Simões Lopes a primeira história
impressa, da cidade de Pelotas. Entretanto, nesse mesmo legado,
estabeleceu uma sentença que perdura há um século, sem o menor
indício de ser uma verdade histórica. No entanto, aí está e sem
qualquer questionamento por parte dos pesquisadores e historiadores.
Já
o dissemos e vamos continuar repetindo, Pelotas não é fruto da
iniciativa de um único nome: José Pinto Martins.
Pelotas
deve seus primórdios a dois fatos: a ocupação castelhana de parte
do território do Continente; e ao assentamento dos “Cazaes”
feito pelo governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara.
Pelotas
teve suas origens no agro-pastoreio.
A
importância de José Pinto Martins para o desenvolvimento da
indústria saladeiril no Continente do Rio Grande é um mito.
A
charqueada fundada no ano de 1780 é outro mito.
A
história da cidade de Pelotas está, desde muito, precisando de um
novo olhar e de novas interpretações. Interpretações com menos
equívocos e sem mitos.
A
história de uma cidade é a história de uma comunidade; e não, a
história de uma elite. A história de uma cidade não é a história
de seus barões, saraus, doces e licores.
A
história de Pelotas precisa ser espremida, é preciso fazê-la
ranger.
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* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 04 de setembro de 2011.
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