sábado, 19 de março de 2011

TIROS DE ARTILHARIA CONTRA O CÓLERA*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Dentre as várias tentativas feitas, dado o pânico e desespero das populações, para despejar de suas cidades esse tão indesejável hóspede – o cólera – esteve a de combatê-lo a tiros de artilharia.
Aparentemente parece uma iniciativa tomada em face do medo e do descrédito de que os alopatas, homeopatas, curandeiros, autoridades ou os representantes de Deus, com suas preces, novenas e procissões, houvessem fracassado diante de tão cruel, impiedoso e fatal inimigo – o cólera – também denominado de peçonha asiática, mal do Ganges, terrível flagelo, peçonhento asiático, hóspede indesejável e outras mais denominações. Mas não. Esta, pelo menos em parte, atitude de incredulidade tem sua matriz, ou origem, na teoria dos miasmas, que consiste, de forma leiga e abreviada, no seguinte: serem emanações procedentes de animais ou plantas em decomposição que podemos, sucintamente, chamar de emanações mefíticas.
Agora, para que o ciclo fique ainda mais compreensível, é preciso lembrar que o cólera é uma infecção aguda, que afeta principalmente o intestino delgado, provocada pelo Vibrio cholerae; mas, que em outros tempos era, abreviadamente, visto como uma doença caracterizada por grandes evacuações, fraqueza e resfriamento e que, somente anos depois, Robert Koch, investigador alemão, descreveu a causa: o germe determinante da doença penetra no corpo ao se beber águas contaminadas e alcança o intestino onde produz infecção.
Robert Koch foi o primeiro a ver e desenhar, em 1866, o agente do cólera; porém, somente no ano de 1884 é que Koch pôde realmente obter o conhecimento e a forma de combater tal agente.
Bem, deixando um pouco de lado o também descobridor do bacilo da tuberculose, e voltando aos súditos do imperador Pedro II, que embora ignorassem a verdadeira maneira com que a epidemia se espalhava, e fazia suas vítimas, dela não estavam de todo equivocados pois, dentre suas preocupações estava a contaminação das águas, até porque, pelo menos em Rio Grande e Pelotas, além de outros, havia dois fortes focos de possível contaminação.
No caso de Pelotas, era o da grande quantidade de cacimbas de onde os habitantes se serviam para tirar a água para o uso diário, e que ficavam próximas ao arroio Santa Bárbara, onde eram lavadas as roupas e que, até aí tudo bem, não fosse por estar, nessa época, uma charqueada à beira do mesmo Arroio e em plena atividade, a qual, a comissão encarregada das medidas sanitárias da cidade fez vistas grossas, apesar do indicativo de que o sangue, e os restos, além das fezes dos animais ali abatidos, poderiam contaminar aquelas águas, e servir de veículo propagador do cólera.
Já o mesmo procedimento não teve com o cemitério da Irmandade, que poucos dias depois da chegada do cólera a Pelotas, teve de encerrar suas funções de enterrar corpos, coléricos ou não.
Quanto a Rio Grande, o problema era o próprio cemitério que, além de estar com super lotação de cadáveres, era pequeno demais para atender à demanda provocada pelas inúmeras e diárias mortes que o cólera ia ceifando e, qualquer tentativa de ampliá-lo, foi impedida pelos habitantes da cidade, não somente pelo mau cheiro que dali exalava proveniente dos corpos quase insepultos e em acelerado processo de decomposição, como também pela proximidade das águas de boa qualidade, que a população usava para consumo e outras necessidades; e por isso, temia que essas fossem contaminadas pelos miasmas.
Trouxemos neste artigo, em breves palavras, alguns pormenores do ocorrido nas cidades de Pelotas e Rio Grande, assunto este que estará mais amplamente abordado em nosso futuro livro sobre o cólera, para que o leitor tenha uma pequena noção dos fatos, a fim de melhor compreender a artilharia contra o cólera, o que em Pelotas acreditamos não tenha ocorrido.
A ideia de tirotear “as camadas das infecções coléricas”, como pretendiam alguns habitantes da cidade de Rio Grande, é provável que tenha sido inspirado na atitude tomada pelos moradores da vila, ou já cidade de Jaguarão, que “dizem fizeram fogueiras e deram tiros de artilharia, como meio de expulsar as camadas das infecções coléricas espalhadas na atmosfera”; pois o conhecimento desse fato é que levou o redator de um jornal de Rio Grande, a perguntar: “E aqui, porque não se faz o mesmo?”.
Daí, ter o Sr. Domingos Vieira de Castro, delegado suplente de polícia em exercício, consultado o Dr. José de Pontes França, delegado da comissão de higiene em Rio Grande, sobre a conveniência e eficácia “de tiros de artilharia em diferentes ângulos da cidade” como forma de desinfecção da atmosfera. Ao que o Dr. França respondeu: ser aquele meio de desinfecção “muito fraco e insuficiente, pela combustão instantânea da pólvora, e pequena quantidade de enxofre que a pólvora contém”, para logo após sugerir, ao delegado em exercício, fazer “alguma desinfecção da atmosfera, a pedido dessas pessoas e outros cidadãos, convidando-os para queimarem, pelas ruas e casas, uma massa composta de partes iguais de flor de enxofre e nitro, que embora não sendo o melhor desinfetante é, contudo, superior aos tiros de artilharia”.



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Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 20 de março de 2011.

sábado, 12 de março de 2011

O CÓLERA EM JAGUARÃO*

  
A. F. Monquelat
V. Marcolla

Dentre as cidades escolhidas para receber a visita do Dr. Ubatuba, médico encarregado pelo Presidente da província de vistoriar e planificar a estratégia, cujo propósito era evitar ou combater o cólera no estado, estava a cidade de Jaguarão; e esta, por sua proximidade de fronteira com o país vizinho, o Uruguai.
Sabemos, por pesquisa, que o Dr. Ubatuba para lá seguiu viagem no dia 11 de outubro de 1855, a bordo do vapor Especulação.
Quanto ao trabalho do Dr. Ubatuba nessa cidade, não apuramos; mas, Jaguarão foi a quarta cidade em número de vítimas feitas pelo cólera e, segundo o Relatório do Presidente da Província, o Barão de Muritiba, o total de coléricos mortos foi de 329 pessoas.
Há, na bibliografia que visitamos, escassas referências sobre a passagem do cólera pela cidade de Jaguarão; e, entre elas, a da pesquisadora Heloisa Assunção Nascimento que, em uma de suas crônicas históricas, a qual titulou de “Cólera-Morbus”, nos informou, sem indicação de fonte, que: “Haviam desertado em pânico os médicos de Jaguarão. Ali, os pestosos e o resto da população permaneciam sem nenhum atendimento” (NASCIMENTO, 1989, p. 78).
Em artigo, aqui no DM publicado, sob o título de “O cólera chega a Rio Grande, Pelotas e Jaguarão”, dissemos a certa altura que: “De acordo com a carta do Dr. José Maria de Azevedo, datada em 27 de novembro de 1855, a um amigo rio-grandino, informou o médico de Jaguarão que: ‘Apareceu, infelizmente nesta cidade, ou ainda vila, no dia 21 do corrente, o cólera-morbus; e, até o escrever estas linhas, 60 pessoas têm sido invadidas [acometidas, perecendo 16 destas. Doentes e mortos, são, em geral, escravos pretos [...]’”.
Viu-se, portanto, através da carta do Dr. Azevedo, não somente a data de chegada do cólera àquela cidade, fato até então desconhecido, bem como tratar-se de um relato feito por um médico de, ou em Jaguarão, quase uma semana depois da chegada do indesejável hóspede.
Continuamos aqui com o relato do Dr. José Maria de Azevedo: “Nesta crise de horrores, só dois médicos existem em Jaguarão.
A campanha já se acha invadida pela epidemia; e onde irá isso parar?
Deus olhe para nossa terra”.
Bem, a julgar pelo número final de vítimas naquela terra, se Deus para ali olhou, não olhou direito.
Assim como o Dr. Azevedo não contou direito o número de médicos que enfrentaram o cólera; pois foram três, sem contarmos o “distinto farmacêutico, Sr. Penedo”, como veremos a seguir, salvo se na conta do Dr. Azevedo eram dois, além do próprio.
Já, em outra carta datada de 26 de novembro, publicada pela imprensa, sem ter sido revelado o nome do autor, vê-se que: “O – ou a – cólera morbus aqui se acha. O número dos verdadeiros coléricos já sobe a 50. Os Drs. Azevedo e Jacutinga não descansam, e são insuficientes para socorrer as vítimas da epidemia.
De colerina, não grave, os casos sobem a cerca de 200 pessoas.
Hospedado o cólera na vila de Jaguarão; mas, logo fará seu giro por toda a província, ao governo compete pois tomar todas as providências enquanto é tempo, mandando para o interior da campanha médicos com ambulâncias, visto que, em todas as vilas há palpitante falta de facultativos”.
A epidemia, avaliada pelo redator do jornal O Jaguarense, de 28 de novembro de 1855, nos dá, ainda que de forma jornalística, uma triste visão do ocorrido em Jaguarão nos tempos do cólera, assim como nos informa quem realmente fugiu, ou, como disse Nascimento: desertou em pânico da cidade.
Eis a notícia: “Desgraçadamente a epidemia tem se desenvolvido terrivelmente e com toda a intensidade, no malfadado Jaguarão; o número de vítimas têm crescido diariamente; sobretudo os escravos, onde a moléstia tem feito estragos mais terríveis.
Os únicos três médicos existentes nesta vila não podem acudir ao avultado número de enfermos: apesar disso, honra seja feita aos Srs. Drs. Jacutinga e Azevedo que, incansáveis, são encontrados em toda parte e, com a rapidez do raio, se transportam de um para outro ponto, sem a menor dilação [demora]; a não ser assim, que seria de Jaguarão?!
Quanto às nossas autoridades, a excetuar o Sr. subdelegado Silva Júnior, que tem se mostrado ativo e inteligente, todas as outras têm se refugiado, não aparecendo em parte alguma.
É uma miséria, que esses Srs. devendo ser os primeiros a se apresentarem em campo, em tal conjuntura, para providenciarem e coadjuvarem os distintos facultativos, e assim também alentar o público, que se acha eivado de terror, sejam os primeiros a abandonarem o povo, entregue a seus males, e covardemente esconderem-se a desgraça, que talvez em seus mesmos esconderijos, os vá acometer também.
Os recursos faltam, e a não serem os três médicos, cujos corações enobrecidos, tanto se têm desvelado pelas vítimas, e o distinto farmacêutico, Sr. Penedo. Ai do povo ! ai! da mísera pobreza” (grifos nossos).
É também as páginas do mesmo jornal, O Jaguarense, que nos informa, e isto em meados de dezembro, continuar aquela povoação possuída da violência do “peçonhento asiático”, que até então já tinha feito 204 vítimas.
Mais detalhes sobre o cólera em Jaguarão, guardamos para quando do lançamento do livro, no qual estamos trabalhando.
Concluindo, e com o propósito de tornar mais compreensível o quão caprichoso foi o cólera, pelo menos nessa sua primeira visita ao Brasil, é preciso saber que na vila de Artigas (hoje Rio Branco), fronteira com Jaguarão, em piores circunstâncias higiênicas, o cólera não apareceu; “tal é o capricho devastador e louco dessa epidemia”.


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Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 13 de março de 2011.

domingo, 6 de março de 2011

A AÇÃO FILANTRÓPICA E A ATITUDE ABOLICIONISTA DE UMA LOJA MAÇÔNICA DE RIO GRANDE, NOS TEMPOS DO CÓLERA*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

Sabemos e este é um fator que nos diferencia de outras espécies, que no decorrer de alguma catástrofe, ou qualquer outra situação adversa, haver uma impulsiva ação e reação por parte dos por ela não-atingidos, ou menos atingidos, em ajudar, de alguma forma, os pela desgraça ou fenômeno afetados. Isto é da natureza humana, seja por instinto de sobrevivência da espécie ou por atitude cultural. Aqui, nos referimos apenas àqueles atos de solidariedade pura e simples, atos despojados de qualquer outro interesse, que não o de fazer algo por alguém, que em dado momento ou situação, de tal dependa ou necessite.
Acontece que no desenvolver de nossa pesquisa sobre a primeira visita do cólera na província do Rio Grande do Sul, nos deparamos com um vasto universo de registro sobre as mais variadas formas de filantropia e atos de caridade para com os “desvalidos acometidos pelo cólera”, que decidimos acrescentar um capítulo, até então, não previsto em nosso projeto de trabalho.
Tais atitudes filantrópicas e/ou caridosas, sem dúvida, servem para muitas áreas de pesquisa e, principalmente, à aquelas que se dedicam ao estudo do comportamento humano – desta tão complexa e imprevisível espécie que, apesar do tempo da existência, continua sem saber de onde, para quê e para onde...
Uma guerra, uma epidemia ou outra situação qualquer de perigo serve, ainda que paradoxal, para que o homem conheça e amplie seus conhecimentos sobre o mundo que o rodeia; bem como, também serve para que conheça seus limites.
O cólera e suas mais diversas denominações, todas com a conotação do mal, às vezes explicita no Brasil, quando de sua primeira passagem; portanto, sem histórico anterior, era muito pouco conhecido. Dele e sobre ele sabiam apenas aqueles que o haviam conhecido pessoalmente em outro país, que eram os médicos ou profissionais da área médica, ou então por literatura. E esses formavam um seleto e reduzido número.
O mundo do ontem, tanto no Brasil quanto em outro país qualquer, era um mundo em que o conhecimento, a poucos pertencia.
Esta história se refere ao que vimos sobre os mais diversos comportamentos durante o tempo em que o cólera aqui esteve: desde o humor até a penitência, passando pela filantropia e caridade ou até mesmo absurdos como o de um colaborador de certo jornal da época que, em sua coluna, chegou a afirmar: “A tal filha da Ásia, que veio buscar os seus vizinhos Africanos, tem se feito de criança, arrebatando alguns dos nossos; [...]”.
Embora desnecessário, não é demais esclarecer que a “tal filha da Ásia”, a qual o articulista se referiu, era o cólera; também denominado de “peçonha asiática” e que, bem claro estava a ele, que a epidemia ceifou o maior número de vítimas entre os africanos, para o Brasil trazidos, ou entre seus descendentes.
Um outro exemplo, é o do vigário José Maria Damásio Mattos, que manifestou aos seus paroquianos ser o cólera o “terrível flagelo com que a mão de Deus nos está ferindo, e compenetrado do quanto pode abrandar a sua Divina cólera, lágrimas sinceras de penitência, [...], cheguemos à casa do Senhor e imploremos sua Misericórdia, fazendo cessar tão terrível mal; [...]. Então, o Árbitro Supremo de todos os seres, se compadecerá de nós”.
No que diz respeito à caridade e atitude abolicionista, a primeira referência por nós encontrada com relação à oferta de auxílio aos pobres, caso o cólera invadisse a província do Rio Grande do Sul, veio da “Loja de maçonaria União Constante” que, em sessão realizada no início do mês de outubro do ano de 1855 resolveu, por proposta de seu presidente interino, o Sr. José Joaquim Duarte Souza, aprovar que: no caso das “febres reinantes ataquem a população de Rio Grande, que fosse ofertado, à classe pobre, vinte ou mais dietas [refeições e medicamentos adequados]”.
Também, e por proposição do mesmo senhor, esta loja “manda tomar [subscrever] 10 assinaturas da sociedade Liberdade à escravatura”. Esta segunda proposição, considerando o ano em foco, é realmente surpreendente e nos parece pioneira na questão da liberdade aos escravos, pelo menos no que diz respeito aos escravos desta região.


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Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 06 de março de 2011.