segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O CÓLERA NA “XARQUEADA” DA GRAÇA*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

No artigo anterior, tratamos da chegada do cólera nas cidades de Rio Grande, Pelotas e Jaguarão. Já o objeto deste é a passagem cruel, impiedosa e devastadora desse indesejável hóspede pela charqueada da Graça.
Caso levássemos em conta as informações encontradas nas diversas obras de pesquisadores locais sobre a história de Pelotas, a charqueada de João Simões Lopes, na estância da Graça, teria sido a charqueada em que o cólera fez o maior número de vítimas: 62 pessoas.
Esta informação, nos parece, tem sua origem mais antiga na obra “A Cidade de Pelotas”, de Fernando Luís Osório, onde o autor, à página 75, nos diz o seguinte: “Só na xarqueada da Graça o terrível flagelo fulminou 62 pessoas – de 15 a 21 de dezembro de 1855. A todas essas vítimas, na maioria escravos, [...]” (OSÓRIO, 1922, p. 75).
Bem, Carlos Reverbel, além de uma outra fonte sobre o episódio na charqueada da Graça, cita também Fernando Osório achando que este teve acesso ao manuscrito deixado por João Simões Lopes. O pressuposto de Reverbel deve-se ao fato de Fernando Osório não ter citado a fonte de onde extraiu os dados sobre o número de mortos na charqueada da Graça.
De lá pra cá, o episódio ocorrido na Charqueada, ou pelo menos no que diz respeito ao número de vítimas, tem sido atribuído ao manuscrito deixado por João Simões Lopes.
Por termos considerado expressivo o número de coléricos em um único local, despertou-nos a curiosidade de conhecer – e ler – o tão citado manuscrito. E, assim sendo, por especial gentileza do doutor Carlos Francisco Sica Diniz, tivemos oportunidade de lê-lo. Acontece, que o tal documento, na realidade, é uma transcrição datilografada, sem data, do original, o qual por sua vez, não se sabe com quem está; e isto, nos leva a pensar que o número de mortos, 62 pessoas, possa estar relacionado a algum erro paleográfico cometido, não de forma intencional, pelo autor da transcrição. Mas, o motivo que mais nos levou a questionar o elevado número de “todas essas vítimas, na maioria escravos” é o de que, se excluirmos de 62 a mulher e a filha, também atingidas pelo cólera, sobra-nos 60 coléricos não parentes do charqueador; pois, se o fossem, estariam nominados por este, o que não acontece; ora, num período em que o valor de um escravo desde o fim do tráfico negreiro – 1851 –, tornou-se bastante elevado, tal perda, é quase certo, teria levado o proprietário da charqueada à falência, o que, segundo nos consta, não aconteceu. Outro fato, e não especulativo, é o narrado por Simões Lopes Neto em sua Revista do 1º Centenário de Pelotas (1911/1912) quando nos fala sobre a charqueada da Graça. Diz ele o seguinte: “[...]. Além da esposa e uma filha do proprietário, morreram mais de 20 pretos, escravos, que foram enterrados no próprio estabelecimento, ao centro de um grande laranjal. Por muitos anos conservou-se cercado este pequeno cemitério, com as suas cruzes de madeira”.
Um outro fato que reforça a nossa tese de que é pouco plausível que tenham morrido tantos escravos na Charqueada da Graça é o trecho de uma carta enviada por Joaquim Vieira a seu irmão Vicente, na qual ele diz o seguinte: “[...]. João Simões Lopes já tem perdido cinco escravos, e tem doentes 30 e tantos [...]”.
Esta carta escrita aos 22 dias do mês de dezembro de 1855, na Fazenda São João, portanto, próxima da Estância da Graça, nos deixa mais aproximados dos dados fornecidos por João Simões Lopes Neto do que os que dizem constar no Manuscrito deixado pelo proprietário da Charqueada.
Considerando que os “30 e tanto” escravos doentes possam ser considerados entre 34 e 38, e que o cólera matava a cada duas pessoas uma, teríamos, além dos cinco já “perdidos”, um acréscimo de 17 a 19 outros, o que nos leva a um resultado de 22 a 24 escravos mortos pelo cólera.
Um outro ponto, e de certa relevância, é o de que o autor do “manuscrito” e proprietário da Charqueada da Graça, um ano depois do ocorrido (21.12.1856), ao escrever sobre o episódio, diz o seguinte: “O terrível Cholera Morbus que fulminou 62 pessoas em nossa casa, desde o dia 15 de dezembro a 21, de 1855, [...]”.
Vejamos novamente o período em que ele diz ter o cólera fulminado 62 pessoas em sua casa, o qual, foi “desde o dia 15 de dezembro a 21, de 1855, [...]”.
Levando em conta que a carta, escrita desde a Fazenda São João aos 22 dias do mês de dezembro de 1855, nos informa que: “João Simões Lopes, já tem perdido cinco escravos, e tem doentes 30 e tantos [...]”, (grifos nossos), fica-nos realmente a impressão de ter havido um possível erro paleográfico, quando da transcrição.
Concluindo, queremos trazer outro e forte indício de que até o dia 21 de dezembro de 1855, data final da tragédia familiar e patrimonial de João Simões Lopes, não haviam morrido 62 pessoas na charqueada da Graça, através da notícia publicada pela Imprensa da época, dia 23 de dezembro de 1855, na qual se lê o seguinte: “Faleceram do cólera, no dia 21 em sua xarqueada no arroio de Pelotas, três léguas distante daquela cidade, a esposa e a filha mais velha do Sr. João Simões Lopes; não obstante ter perdido o que lhe era mais caro, já lhe tem morrido nove escravos da mesma epidemia, e estavam doentes cincoenta e quatro [escravos].
Enquanto as demais xarqueadas pouco ou nada sofriam. Na cidade, o estado sanitário era lisonjeiro”. Portanto, ...


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* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 27 de fevereiro de 2011.

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