segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O CÓLERA NA “XARQUEADA” DA GRAÇA*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

No artigo anterior, tratamos da chegada do cólera nas cidades de Rio Grande, Pelotas e Jaguarão. Já o objeto deste é a passagem cruel, impiedosa e devastadora desse indesejável hóspede pela charqueada da Graça.
Caso levássemos em conta as informações encontradas nas diversas obras de pesquisadores locais sobre a história de Pelotas, a charqueada de João Simões Lopes, na estância da Graça, teria sido a charqueada em que o cólera fez o maior número de vítimas: 62 pessoas.
Esta informação, nos parece, tem sua origem mais antiga na obra “A Cidade de Pelotas”, de Fernando Luís Osório, onde o autor, à página 75, nos diz o seguinte: “Só na xarqueada da Graça o terrível flagelo fulminou 62 pessoas – de 15 a 21 de dezembro de 1855. A todas essas vítimas, na maioria escravos, [...]” (OSÓRIO, 1922, p. 75).
Bem, Carlos Reverbel, além de uma outra fonte sobre o episódio na charqueada da Graça, cita também Fernando Osório achando que este teve acesso ao manuscrito deixado por João Simões Lopes. O pressuposto de Reverbel deve-se ao fato de Fernando Osório não ter citado a fonte de onde extraiu os dados sobre o número de mortos na charqueada da Graça.
De lá pra cá, o episódio ocorrido na Charqueada, ou pelo menos no que diz respeito ao número de vítimas, tem sido atribuído ao manuscrito deixado por João Simões Lopes.
Por termos considerado expressivo o número de coléricos em um único local, despertou-nos a curiosidade de conhecer – e ler – o tão citado manuscrito. E, assim sendo, por especial gentileza do doutor Carlos Francisco Sica Diniz, tivemos oportunidade de lê-lo. Acontece, que o tal documento, na realidade, é uma transcrição datilografada, sem data, do original, o qual por sua vez, não se sabe com quem está; e isto, nos leva a pensar que o número de mortos, 62 pessoas, possa estar relacionado a algum erro paleográfico cometido, não de forma intencional, pelo autor da transcrição. Mas, o motivo que mais nos levou a questionar o elevado número de “todas essas vítimas, na maioria escravos” é o de que, se excluirmos de 62 a mulher e a filha, também atingidas pelo cólera, sobra-nos 60 coléricos não parentes do charqueador; pois, se o fossem, estariam nominados por este, o que não acontece; ora, num período em que o valor de um escravo desde o fim do tráfico negreiro – 1851 –, tornou-se bastante elevado, tal perda, é quase certo, teria levado o proprietário da charqueada à falência, o que, segundo nos consta, não aconteceu. Outro fato, e não especulativo, é o narrado por Simões Lopes Neto em sua Revista do 1º Centenário de Pelotas (1911/1912) quando nos fala sobre a charqueada da Graça. Diz ele o seguinte: “[...]. Além da esposa e uma filha do proprietário, morreram mais de 20 pretos, escravos, que foram enterrados no próprio estabelecimento, ao centro de um grande laranjal. Por muitos anos conservou-se cercado este pequeno cemitério, com as suas cruzes de madeira”.
Um outro fato que reforça a nossa tese de que é pouco plausível que tenham morrido tantos escravos na Charqueada da Graça é o trecho de uma carta enviada por Joaquim Vieira a seu irmão Vicente, na qual ele diz o seguinte: “[...]. João Simões Lopes já tem perdido cinco escravos, e tem doentes 30 e tantos [...]”.
Esta carta escrita aos 22 dias do mês de dezembro de 1855, na Fazenda São João, portanto, próxima da Estância da Graça, nos deixa mais aproximados dos dados fornecidos por João Simões Lopes Neto do que os que dizem constar no Manuscrito deixado pelo proprietário da Charqueada.
Considerando que os “30 e tanto” escravos doentes possam ser considerados entre 34 e 38, e que o cólera matava a cada duas pessoas uma, teríamos, além dos cinco já “perdidos”, um acréscimo de 17 a 19 outros, o que nos leva a um resultado de 22 a 24 escravos mortos pelo cólera.
Um outro ponto, e de certa relevância, é o de que o autor do “manuscrito” e proprietário da Charqueada da Graça, um ano depois do ocorrido (21.12.1856), ao escrever sobre o episódio, diz o seguinte: “O terrível Cholera Morbus que fulminou 62 pessoas em nossa casa, desde o dia 15 de dezembro a 21, de 1855, [...]”.
Vejamos novamente o período em que ele diz ter o cólera fulminado 62 pessoas em sua casa, o qual, foi “desde o dia 15 de dezembro a 21, de 1855, [...]”.
Levando em conta que a carta, escrita desde a Fazenda São João aos 22 dias do mês de dezembro de 1855, nos informa que: “João Simões Lopes, já tem perdido cinco escravos, e tem doentes 30 e tantos [...]”, (grifos nossos), fica-nos realmente a impressão de ter havido um possível erro paleográfico, quando da transcrição.
Concluindo, queremos trazer outro e forte indício de que até o dia 21 de dezembro de 1855, data final da tragédia familiar e patrimonial de João Simões Lopes, não haviam morrido 62 pessoas na charqueada da Graça, através da notícia publicada pela Imprensa da época, dia 23 de dezembro de 1855, na qual se lê o seguinte: “Faleceram do cólera, no dia 21 em sua xarqueada no arroio de Pelotas, três léguas distante daquela cidade, a esposa e a filha mais velha do Sr. João Simões Lopes; não obstante ter perdido o que lhe era mais caro, já lhe tem morrido nove escravos da mesma epidemia, e estavam doentes cincoenta e quatro [escravos].
Enquanto as demais xarqueadas pouco ou nada sofriam. Na cidade, o estado sanitário era lisonjeiro”. Portanto, ...


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* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 27 de fevereiro de 2011.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O CÓLERA CHEGA A RIO GRANDE, PELOTAS E JAGUARÃO*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

Dentre as cidades visitadas pelo cólera, quando de sua primeira vinda ao Brasil, estão as cidades de Rio Grande, Pelotas e Jaguarão que, a exceção de Porto Alegre, foram os municípios em que o terrível cólera flagelou, e maior número de vítimas fez na província do Rio Grande do Sul.
Três, das quatro cidades citadas, tornaram-se nosso objeto de trabalho; e, sobre elas, nos tempos do cólera, nos propusemos levantar o maior número de informações possíveis quando da estada desse tão indesejável hóspede.
Se em Porto Alegre o cólera ceifou vidas, e tão somente por capricho não fez distinções étnicas ou classes sociais, pois os estudos que sobre tal epidemia existem apontam que assim o foi; já, por outro lado, o mesmo procedimento não usou para com os habitantes de Rio Grande, Pelotas e Jaguarão.
Ali, aqui e lá, colerizou e vitimou maior número de pessoas entre os pobres (brancos e negros), livres e escravos.
A primeira destas cidades a sentir os efeitos da visita desse impiedoso visitante foi Pelotas, segundo informações deixadas pelo procurador e escrivão da Irmandade do Santíssimo Sacramento, José Vieira Pimenta, quando nos diz que: “Infelizmente veio o cólera e no dia 9 de novembro de 1855 faleceu o primeiro colérico, [...]”.
Esta informação que nos legou Vieira Pimenta, embora despida de melhores detalhes, nos leva a uma interrogação: ora, se o cólera desembarcou em Rio Grande, onde dizem que chegou a bordo do vapor Imperatriz, por que o primeiro colérico a falecer na região foi em Pelotas?
Sabemos que em correspondência enviada pelo Dr. Thomaz Lourenço Carvalho de Campos ao Presidente da província, datada de 20 de outubro de 1855, disse o doutor Carvalho de Campos o seguinte: “Participo a V. Sra., que no dia 19 do corrente [outubro] alguns passageiros do vapor Imperatriz, entrando [procedente] da Corte, tendo vindo para a casa de observação, evadiram-se da Quarentena; sendo 2 de Pelotas, e 2 do Rio Grande, que imediatamente participei aos Delegados de Polícia do Sul, e do Norte, e que porém até hoje ainda não voltaram para a Quarentena, e consta-me que eles passeiam livremente em Pelotas e Rio Grande [...]”.
Bem, considerando apenas o caso de Pelotas, temos duas incógnitas: a primeira é que não sabemos nada sobre o falecido colérico de Pelotas, exceto a data da morte; a outra, é que tampouco sabemos quem eram os 2 passageiros evadidos da quarentena e que “passeiam livremente por Pelotas”.
Um dos dois terá sido a primeira vítima do cólera?
Já, no que diz respeito aos 2 passageiros de Rio Grande, e que também por aquela cidade passeavam livremente, quase podemos afirmar que não foram as duas primeiras vítimas do cólera daquele município; pois, as duas primeiras mortes ali ocorridas deram-se nos dias 22 e 23 de novembro de 1855 e, ambas, de escravos.
Observe-se a distância temporal entre o morto de Pelotas, que Vieira Pimenta nos diz ter ocorrido aos 9 dias do mês de novembro e os de Rio Grande, “que ouvimos dizer pelos Srs. facultativos [aqueles que exercem a medicina], que de anteontem [22.11.1855] para cá se tem dado dois casos fatais de cólera nesta cidade, sendo ambos em escravos; [...]”. Vimos que o espaço temporal entre as mortes foi praticamente de duas semanas: 9 a 22/23 de novembro de 1855.
Um outro fato relevante é a data da correspondência do doutor Carvalho de Campos ao Presidente da província: 20 de outubro de 1855, dando conta dos evadidos, que ele diz ter ocorrido no dia 19 do corrente (outubro), data que questionamos estar certa pois, de acordo com nossas pesquisas, a data de chegada do vapor Imperatriz deu-se aos 23 dias do mês de outubro de 1855, portanto...
Com relação à cidade de Jaguarão, trabalhos recentes sobre o cólera e outras epidemias na província do Rio Grande do Sul nos dizem que: “Em princípios de novembro, a epidemia começou a fazer-se presente de forma inegável para as autoridades. As charqueadas ao redor de Pelotas e a própria cidade estiveram entre os primeiros lugares a serem atingidos, o que não chega a causar espanto, visto serem as charqueadas, sem sombra de dúvidas, um dos pontos mais insalubres da província. Simultaneamente se registraram os primeiros casos em Rio Grande e, logo depois, estendendo-se de forma rápida, a epidemia avançou para a vila de Jaguarão e para a capital, [...]”.
De acordo com a carta do Dr. José Maria de Azevedo, datada em 27 de novembro de 1855, a um amigo rio-grandino, informou o médico de Jaguarão que: “Apareceu, infelizmente, nesta cidade, ou ainda vila, no dia 21 do corrente [novembro], o cólera-morbus; e, até o escrever estas linhas, 60 pessoas têm sido invadidas [acometidas], perecendo 16 destas. Doentes e mortos são em geral escravos pretos [...]”. Portanto...
Estas contradições, e muitas outras, são temas abordados no livro que estamos concluindo sobre o cólera, quando de sua primeira visita à província do Rio Grande do Sul, conforme já anunciamos no artigo publicado pelo Diário da Manhã de 13 de janeiro de 2011, sob o título de “A instrução e a educação em Pelotas, nos tempos do cólera”.

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* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 20 de fevereiro de 2011.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (26)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

O estabelecimento dos irmãos Almeida e seus sócios chega ao Continente de São Pedro, trazendo irlandeses e suas técnicas na salga de carnes

Disse João Rodrigues Pereira de Almeida no Contrato firmado em 31 de maio de 1808, ao pedir “que V. A. Real, se digne tomar debaixo de sua proteção”, que o Estabelecimento que ele e seus sócios haviam instalado no Rio Grande, era “o primeiro e único até agora no Brasil”.
Bem, Manoel Antônio de Magalhães em seu “Almanak da Vila de Porto Alegre” (1808), diz que o Rio Grande de São Pedro, “Tem duas fábricas de salgar carne, que anualmente botam [produzem] três mil barris de oito a nove arrobas cada um; devendo-se este tão grande e interessante estabelecimento a João Rodrigues Pereira d’Almeida e Companhia que, apesar de grandes ordenados e despesas, mandou vir à sua custa mestres da Irlanda”.
Dada a falta de clareza e dubiedade na afirmação de Manoel Antônio de Magalhães, quanto às duas fábricas de salgar carnes e seus proprietários, resta-nos apenas a certeza de que João Rodrigues Pereira de Almeida & Companhia eram proprietários de uma das fábricas. A outra, seria a de Dionísio Mcarthy e Diogo Schechy? Ou ambas seriam de Almeida & Companhia?
Uma outra questão, que não nos foi possível esclarecer, é a do local onde funcionou o estabelecimento dos Almeida & Companhia; ao que tudo indica, este Estabelecimento esteve localizado por volta da Vila de Porto Alegre; quem sabe até no sítio de Gravataí.
Aos vinte e oito de abril de 1810, Antônio Felix da Fonseca, da Junta da Fazenda Real da Marinha, acusa, em Lisboa, o recebimento de carne salgada, nos seguintes termos: “Senhor. O Deputado, que serve o Intendente da Marinha na Corte do Rio de Janeiro, por ofício datado em onze de dezembro do ano próximo passado, lhe participou virem carregados no bergantim Boaventura mil e duzentas arrobas de carne salgada, no valor de mil e oitocentos réis a arroba, para provimento dos Armazéns, assim como, ter recebido pelo dito Bergantim, todos os gêneros que neste Arsenal se puderam embarcar, e ficaram em arrecadação. [...]”.
Embora o documento não acuse a procedência da carne, temos fortes razões para crer que as mil e duzentas arrobas de carne salgada tinham origem no estabelecimento dos Almeida & Companhia.
O próximo, e último documento que encontramos, é o Decreto do rei D. João VI, prorrogando por mais dois anos o Contrato em que os Almeida & Companhia se haviam obrigado a fazer o fornecimento de carne salgada para o consumo da Armada Real, nos seguintes termos: Havendo terminado o prazo, pelo qual fui servido prorrogar o Contrato em que Joaquim Pereira de Almeida & Companhia se haviam obrigado a fazer o fornecimento de carne salgada para o consumo da Armada Real, em conformidade com as condições, que Eu tinha havido por bem aprovar, por Decreto do primeiro de junho de mil oitocentos e oito: Sou, ora servido, enquanto não dou outras providências, determinar que por mais dois anos se prossiga a fazer aquele fornecimento, pela maneira prescrita no referido Contrato. O Conde da Barca, do Meu Conselho de Estado, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha, e Domínios Ultramarinos, o tenha assim entendido, e o faça executar. Palácio do Rio de Janeiro, em cinco de abril de mil oitocentos e dezessete.
Na margem esquerda do Decreto, havia o “Cumpra-se, e registre-se. Palácio do Rio de Janeiro, 16 de abril de 1817. Conde da Barca”.
Antes de concluirmos este capítulo, decidimo-nos por aportar a “Representação do chefe de esquadra e comandante das forças navais do Rio da Prata, Rodrigo José Ferreira Lobo, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, conde dos Arcos, D. Marcos de Noronha e Brito”, aparentemente sem relação alguma, porque nesta é emitida uma opinião sobre as carnes “que se compra no Rio Grande” para o abastecimento do Arsenal da Marinha: “Ilmo. e Exmo. Senhor. É do meu dever, como fiel vassalo, lançar mão de todas aquelas ocasiões em que a Real Fazenda possa tirar proveito na sua administração, e é por este motivo que eu tenho a honra de participar a V. Exª., que D. Francisco Munhoz, negociante nesta Praça, oferece abastecer o Arsenal da Marinha com toda a carne salgada que possa gastar, não só em toda a América, mas, também, em Portugal, uma vez que se lhe diga a quantidade de barris, que se lhe hão de tomar cada ano, pelo preço de 40 réis a libra, posta à sua custa no Rio de Janeiro, preço este, que até agora a Real Fazenda não tem comprado, e tampouco comprará; porque não é possível, a não ser que neste País, haja um comerciante que faça esta grande oferta à Fazenda Real sem obter lucro, ou caso o tenha, seja de pouco ganho.
Sobre a qualidade destas carnes, respondo eu, e para que seja examinada por quem V. Exª. quiser, além do meu voto, remeto-lhe dois barris que o dito Munhoz me entregou para servir de amostra; bem entendido fique, que o dito Munhoz pretende que aquela que venha a ser feita, seja ainda melhor, porque deverá ser fabricada no tempo frio, e não na força do calor, como esta da amostra foi feita; e é por esta razão, que uma vez que a Fazenda Real queira aceitar esta negociação, tão útil às equipagens dos Navios, ele precisa saber o número de barris que deve entregar nos Armazéns da Marinha na Corte do Rio de Janeiro, além daqueles que aqui gastam a Esquadra, os quais são de menor preço do que aqueles, como é de crer.
O que eu posso asseverar a V. Exª., é que a dita carne é fabricada como as do Norte, e com a grande diferença de ser muito mais em conta, e muitíssimo melhor do que aquela que se compra no Rio Grande. Esta carne, posta no Rio de Janeiro a 40 réis a libra, e sendo transportada nas nossas Charruas ou Correios para Portugal aquela quantidade que for necessária para a Esquadra, fica por muito menor preço, do que aquela que se compra do Norte, e que não é melhor do que esta. E, se a quisermos sem osso, o preço será de 60 réis a libra.
O zelo que tenho no Serviço de S. Majestade, e no interesse da Sua Real Fazenda, como já disse, são os motivos que me obrigam a fazer esta representação. Deus guarde a V. Exª. Quartel de Montevideo, 2 de abril de 1819”.

Final do primeiro período.
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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 13 de fevereiro de 2011.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (25)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

O estabelecimento dos irmãos Almeida e seus sócios chega ao Continente de São Pedro, trazendo irlandeses e suas técnicas na salga de carnes

Considerando o fato de Dionísio Mcarthy e Diogo Schechy terem vindo para o Continente de São Pedro com o propósito de servirem como técnicos no estabelecimento dos irmãos Almeida e seus sócios, entendemos pertinente aportar documentos sobre estes, no mesmo capítulo dedicado ao estabelecimento dos Almeida & Companhia.
Dissemos, há pouco, que estranhávamos que o autor do ofício, Januário Antônio Lopes da Silva, tenha feito referência a dois irlandeses como os responsáveis pela amostra de carne salgada enviada aos Armazéns da Marinha, quando sabemos que a permissão concedida por Sua Alteza Real, a Rainha, foi para que viessem ao Rio Grande, além do intérprete, três irlandeses.
Vejamos, então, o que deve ter acontecido com os quatro irlandeses. É provável que, não muito tempo depois da chegada, Dionísio Mcarthy e Diogo Schechy tenham abandonado o estabelecimento dos Almeida, e formado uma sociedade, cujo propósito, era, também, a salga de carnes. Daí, os encontramos, no dia dezesseis de agosto do ano de 1805 na Vila de Porto Alegre, onde, se fizeram “presentes Dionísio Mcarthy e seu sócio, Diogo Schechy, negociantes nesta Vila, e bem estabelecidos, que os reconheço pelos próprios, de que dou fé; e perante as testemunhas adiante nomeadas e assinadas; por eles foi dito, que para efeito de receberem da Tesouraria Geral desta Capitania a quantia de dois contos e duzentos mil réis, procedida de Dom gratuito, que os vassalos desta mesma quantia contra Florêncio Mcarthy, ausente, a Duarte Power & Companhia, negociantes da praça de Lisboa; queriam eles, voluntariamente, hipotecar para segurança dos referidos dois contos e duzentos mil réis, os seguintes bens de raiz, que vêm a ser: uma Fábrica de salga de carnes, no sítio de Gravataí, duas propriedades de casas, na rua da Ponte, paredes de tijolos, bem acabadas, que possuem livres e desembargadas; assim como, hipotecavam dois terços do bergantim Vencedor, que hão de carregar para Lisboa, e todos os efeitos que já têm pronto na referida Fábrica, e que hão de navegar no mesmo Bergantim, que consistem em carne salgada embarricada; [...]; a cuja satisfação ofereciam também ao capitão José Antônio da Silveira Cazado e Antônio José Pereira Machado, negociantes desta Vila, que sendo também presentes [...], cuja fiança, disseram eles, fiadores e principais pagadores, assinavam livre e espontaneamente [...]. E eu, Tabelião, aceito como pessoa pública, estipulante e aceitante, ausente ao direito desta, em que assinaram; sendo testemunhas presentes Joaquim José de Oliveira Borges e Bento Xavier de Andrade, reconhecidos de mim, Tabelião Antônio Manuel de Jesus Andrade, que escrevi. Dionísio Mcarthy, Diogo Schechy, José Antônio da Silveira Cazado, Antônio José Pereira Machado, Joaquim José de Oliveira Borges, Bento Xavier de Andrade. E não se continha mais coisa alguma na dita Escritura de Hipoteca. [...]”.
Dias depois de lavrada a Escritura de Hipoteca, ou mais precisamente aos dois dias do mês de setembro de 1805, no mesmo Cartório, esteve presente João José de Carvalho Freitas, também morador na Vila de Porto Alegre, e “por ele me foi dito, que vinha livre e espontaneamente afiançar a hipoteca feita na Escritura retro pelos hipotecantes Dionísio Mcarthy e seu sócio, Diogo Schechy, na falta do fiador falido, Antônio José Pereira Machado, obrigando-se a todo o conteúdo da mesma Escritura, [...]”.
Cumpridas que foram as formalidades legais, tratou a Junta da Fazenda Real da capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul, de informar ao príncipe regente, Dom João, o que segue: “Senhor. Tem, esta Junta, a honra de oferecer, na presença de V. A. Real, a lista de carga, que no bergantim Vencedor, Dionísio Mcarthy e Diogo Schechy, negociantes desta Vila, igualmente o original da Escritura, pela qual hipotecaram à Real Fazenda de V. Alteza, os dois terços do dito Bergantim, e a sua respectiva carga, para pagamento de uma Letra de dois contos e duzentos mil réis, que em treze de setembro do ano próximo passado, sacaram sobre Florêncio Mcarthy, ausente, a Duarte Power & Companhia, negociantes na cidade de Lisboa, valor recebido na Tesouraria Geral desta Junta, a pagar a trinta dias, à vista do Tesoureiro-mor do Real Erário, pertencente à segunda remessa dos dons gratuitos, como se vê da primeira via da referida Letra, que já se remeteu, e da segunda, que, nesta ocasião se dirige à Real Presença, a fim de que não sendo aceita, possa a Real Fazenda indenizar-se daquela quantia, pelo que valerem os dois terços do dito Bergantim, e sua respectiva carga.
Deus guarde a Real e Fidelíssima Pessoa de V. Alteza Real, como necessitam os seus fiéis vassalos. Porto Alegre, quinze de março de mil oitocentos e seis. Paulo José da Silva Gama, Agostinho Antônio de Faria, Antônio Caetano da Silva, Manoel José de Alencastro, Antônio Monteiro da Rocha, Luiz Corrêa Teixeira de Bragança”.
Logo após o “está conforme”, dado por Antônio Caetano da Silva, estava a relação da carga do bergantim Vencedor, composta de: 863 barris de carne salgada, 2.000 couros em cabelo, 230 arrobas de sebo coado, em surrões, 2.800 pontas [chifres] de bois; e, por último, as assinaturas de Dionísio Mcarthy e Diogo Schechy.
Posterior aos dados aqui dispostos, vamos encontrar novamente o nome de Dionísio Mcarthy na “Relação dos comerciantes da capitania de todo o Rio Grande de S. Pedro do Sul. A saber, vila de Porto Alegre, capital de toda a capitania”. Relação esta, que integra o Almanak da Vila de Porto Alegre, organizado por Manoel Antônio de Magalhães, com data de 20 de julho de 1808.
Dentre os nomes dos irlandeses que vieram para o Continente, arrolados por Paulo Xavier em seu artigo “Salgas de Carne”, vê-se que não consta o nome de Dionísio Mcarthy, e sim o de Florêncio Mcarthy; acreditamos, considerando que Florêncio Mcarthy estava em Lisboa, e contra ele foi sacada a Letra de dois contos e duzentos mil réis, que ao invés de vir para o Rio Grande, Florêncio, veio em seu lugar, Dionísio Mcarthy.

O estabelecimento dos Almeida & Companhia, firma Contrato de fornecimento de carne salgada à Armada Real, pelo prazo de seis anos

O príncipe regente, D. João, com base no entendimento do Ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, o Visconde de Anadia, em primeiro de junho de mil oitocentos e oito, no Palácio do Rio de Janeiro, assina Decreto aprovando as condições propostas por João Rodrigues Pereira de Almeida & Companhia para fornecer à Armada Real carne salgada da capitania do Rio Grande de São Pedro, pelo prazo de seis anos.

O Contrato

João Rodrigues Pereira de Almeida & Companhia tem a honra de propor a Vossa Alteza Real as seis condições seguintes, com as quais se oferecem a dar por tempo de seis anos, sete mil arrobas de carne salgada em moura, feita na Capitania de São Pedro, por preço de 1$800 réis cada arroba, para consumo da Armada Real.
1ª. – Obrigam-se a entregar em cada um dos seis anos, que hão de ter princípio no primeiro de junho de mil oitocentos e oito; e findar-se, no primeiro de junho de mil oitocentos e quatorze, sete mil arrobas de carne salgada em barris, para consumo da Armada Real, as quais sete mil arrobas, em cada um ano serão tomadas por conta da Real Fazenda, passarão livres de bordo das embarcações que as conduzirem, para os Reais Armazéns, pelo preço de mil e oitocentos réis cada arroba. Os barris serão todos examinados, e aqueles que se acharem em mau estado, e com princípio de corrupção e ruína, serão refugados por conta dos Contratadores;
2ª. – se, além das sete mil arrobas anuais, for necessário outra porção para o ano futuro, se lhes fará a encomenda ou em novembro, ou em dezembro do ano antecedente, com a declaração do número de arrobas que se julgar preciso;
3ª. – no caso em que o sal suba [de preço], ou baixe consideravelmente, se alterará também o preço da carne em uma justa proporção, como V. A. Real houver por bem [determinar], precedendo as informações dos Fiscais, e sendo ouvidos os Contratadores;
4ª. – também se obrigam a meter nos Reais Armazéns, pelo mesmo espaço de seis anos, até cem arrobas de sebo em velas, e trezentas em pão [bolas de sebo], que lhes serão pagas, umas e outras, pelo preço corrente da Praça; e se for necessário maior quantidade, se lhes encomendará, com a antecipação conveniente;
5ª. – o pagamento se lhes fará a 3 e 6 meses depois da entrega das partidas [remessas] de carne, pela Repartição que fizer os outros pagamentos do Arsenal Geral da Marinha;
6ª. – que V. A. Real se digne tomar debaixo de sua proteção este Estabelecimento, o primeiro e único até agora no Brasil, e conceder-lhes que, por Sua Real Presença, subam pela Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos quaisquer Requerimentos que hajam de fazer, e que necessitarem, assim como o pagamento para a conservação deste Estabelecimento e deste Contrato. Rio de Janeiro, 31 de maio de 1808. João Rodrigues Pereira de Almeida & Companhia.
Após a assinatura, na margem esquerda do Contrato, havia o “Cumpra-se e registre-se. Rio de Janeiro, 1º de junho de 1808. Visconde de Anadia”.


Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 06 de fevereiro de 2011.