sábado, 8 de janeiro de 2011

O DEMÔNIO NA TERRA DE SEPÉ


A. F. Monquelat
V. Marcolla

“E então se fará tudo, porque deste modo
 
se farão as coisas como Deus manda;
 
senão, irão para onde o diabo quiser”.

Eram cinco horas e meia da manhã do dia sete de fevereiro do ano de mil setecentos e cinquenta e seis do nascimento de Jesus Cristo, quando as tropas portuguesas e espanholas levantaram acampamento. E divididas, pela direita, marcharam pelo mesmo lado em direção ao campo Guacacay, aonde chegaram por volta do meio dia.
Dali, andaram três léguas. Duas pelo caminho noroeste, e nesta distância encontraram quatro ranchos de palha. Um destes ranchos é que servia de local para algum padre da Companhia dizer missa aos índios, os quais haviam se retirado pouco antes da chegada das forças do Conde de Bobadela e as do General Don José de Andonaegui.
Tal rancho, que fazia às vezes de Capela, tinha as paredes revestidas de couros postos sobre paus-a-pique e coberto de palha caiada por dentro, com uma leve mão de cal. E a porta de entrada virada para o oeste.
Uma légua depois, ao norte, soldados, oficiais, peões e outras gentes mais acamparam próximo a um rio, em cuja margem encontraram um grande rancho de palha, que tanto servia de habitação quanto de local para os índios prestarem socorro uns aos outros.
Tampouco ali encontraram o que combater ou destruir, exceto e tão somente quatro indefesos pintinhos que o rebelde gentio estava criando e que na fuga, deixou para trás.
Em frente seguiram as tropas da Coroa Portuguesa e as de Sua Majestade Católica. Logo que chegaram ao campo, avistaram, na outra parte do rio, muitos animais espalhados acima e abaixo na encosta da margem, bem assim como nas lombadas.
Novamente acamparam em posição de batalha, dispondo suas divisões em quarto sobre o lado direito. À esquerda ficou o exército português, e o dos castelhanos à direita. E tudo o mais executaram do mesmo modo. Não sem antes, como era o costume, adiantarem suas guardas, que em de pronto passaram à outra margem, subindo em direção as cumeeiras de onde avistaram alguns índios, que se encontravam em partes ainda mais altas e que logo se foram retirando.
Em seguida, vários peões portugueses, sem pedirem licença, atravessaram o rio. Distanciaram-se das sentinelas militares com o objetivo único de carnearem o gado, que de propósito os índios tinham deixado por aquelas paragens, no intuito de os enganar e dessa forma os poderem apanhar.
E assim, de repente, foi o que aconteceu. Porque próximo ao gado e fora da vista dos peões e das guardas, havia alguns índios escondidos, que partiram em direção aos distraídos peões lanceando-os e os matando quando ainda estavam carneando o gado.
Mortos os peões, os índios fugiram sem dar chance às guardas, que ao perceberem o que havia acontecido, era tarde demais.
Por volta das cinco horas da tarde daquele mesmo dia, as guardas avistaram muitos outros índios, do que em seguida deram parte.
O General castelhano, tão logo soube, mandou várias partidas de seus dragões para reforçar as guardas, pedindo aos portugueses que fizessem o mesmo. O que prontamente foi feito.
E assim sendo, colocaram do outro lado do rio e por cima de todas as cumeeiras, mais de oitocentos dragões. Do lado português, o comando dos dragões coube ao recém promovido Coronel Tomás Luís Osório. Já os dragões castelhanos eram liderados por D. José Joaquim Viana, general e governador de Montevideo.
Sendo então seis horas e meia da mesma tarde, um grande número de índios, a meia légua de distância, saiu de uma ponta do mato marchando em direção às tropas que se encontravam no alto das cumeeiras.
É provável que um, dentre aquele corpo de índios, olhasse indignado a união de soldados de Sua Majestade Católica com os homens de Gomes Freire de Andrada; pois o seu povo e os outros povos seus sabiam o que queriam e o que não queriam. E “não queremos a vinda de Gomes Freire, porque ele e os seus são os que por obra do demônio nos têm causado tanto aborrecimento.
Este Gomes Freire é o autor de tantos distúrbios e é também o que obra malmente, enganando ao seu rei; por cujo motivo não o queremos receber.
Deus Nosso Senhor foi o que nos deu estas terras, e [Gomes Freire] anda maquinando [e nos atribuindo muitas falsidades] bem como também aos benditos padres, de quem diz, que nos deixam morrer sem os santos sacramentos.
E por estas causas, julgamos que a vinda dos ditos não é para o serviço de Deus. Nós outros, em nada temos faltado ao serviço do nosso bom rei, sempre que este nos têm ocupado. E com toda a boa vontade temos cumprido os seus mandados, e é prova disto as repetidas vezes que em cumprimento das suas ordens, temos exposto as nossas vidas e derramado nosso sangue nos sítios que aos portugueses da Colônia [do Sacramento] temos feito. E isto, só para cumprir a Sua Vontade, sem manifestarmos outra coisa senão o grande gosto de ver cumpridas as Suas ordens, de que é boa testemunha o Sr. General D. Bruno e o outro governador que o sucedeu.
E quando nosso bom rei nos necessitou no Paraguay, lá fomos e fomos muitos [...] e porque temos cumprido as suas ordens, agora, depois de tudo isto, nos dizeis que deixemos as nossas terras, nossos ervais, nossas estâncias, enfim, o terreno inteiro. Este mandado não é de Deus, senão do demônio. Pois nosso rei sempre anda pelo caminho de Deus, e não do demônio. Isto é o que sempre ouvimos. Nosso rei, ainda que miseráveis e desleixados sejam os seus vassalos, sempre lhes teve amor. Nunca, o nosso bom rei nos quis tiranizar ou nos prejudicar. Sabendo nós estas coisas, não havemos de crer que o nosso bom rei mande que uns infelizes sejam prejudicados nas suas fazendas e desterrá-los, sem outro motivo do que o sempre terem servido. E assim, não creremos jamais, quando diga: Vós outros, Índios, dai vossas terras e o quanto tendes aos Portugueses. Isto, não o creremos jamais. Não há de ser assim, a não ser que as queiram comprar com seu sangue. Nós outros, todos os índios, as defenderemos com nosso sangue. Vinte povos somos para sair-lhes ao encontro. E, com grandíssima alegria nos entregaremos à luta, antes de entregarmos as nossas terras.
Por que este superior maior, não dá aos Portugueses Buenos Aires, Santa Fé, Corrientes e o Paraguay, e tenha que recair este mandato sobre os pobres Índios, a quem manda que deixem as suas casas, suas igrejas, enfim o quanto tenham e Deus lhes tenha dado?
Nos dias passados, queríamos que vós outros viessem da parte de nosso bom rei. E assim nos prevenimos para o que havíamos de fazer. Não queremos ir aonde estais vós outros, porque não temos confiança em vós. E isto nasceu por haverdes desprezado as nossas razões. Nós outros, não queremos dar estas terras, ainda que tenhais dito que as queremos dar”.
Em seguida se uniram aos dragões outras partidas de soldados castelhanos e portugueses, pondo-se todos em marcha ao encontro dos índios liderados pelo indignado Sepé.
Eram oito horas da noite e noite de excelente lua quando os dois exércitos, sob o comando do governador de Montevideo, avançaram e com tanta força, “que logo à segunda descarga, fugiu toda aquela grande quantidade de Índios, ficando-lhes mortos sete e o seu grande capitão Sepé, o maior general que eles tinham, o qual o matou o dito governador”.
Na algibeira “do general dos índios, o mais famoso capitão que entre eles havia”, foram encontradas duas cartas que lhe tinham mandado os padres das Missões; e nestas, motivos suficientes para muita indignação.

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Nota: Este artigo teve por base a leitura do Diário da Expedição e das cartas encontradas na algibeira de Sepé.

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