sábado, 8 de janeiro de 2011

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (21)*



 A. F. Monquelat
V. Marcolla

Gestões do Vice-rei Vértiz, quanto às carnes salgadas do Rio da Prata

Tão logo assumiu o cargo, Juan José de Vértiz, Vice-rei, homem ativo e progressista, fez chegar ao Cabildo, juntamente com as respostas dos fazendeiros, a consulta feita pelo Tenente do Rei, a cópia de uma Dissertação da Sociedade de Sevilha, sobre o método, regras e vantagens da salga de carnes, com a recomendação de que à vista desses documentos e na brevidade possível se instruíssem de forma ampla sobre o assunto.
O Cabildo, então, confiou ao Regedor Manuel Joaquin de Zapiola a missão de preparar um relatório, com base nos ditames anteriores, o qual, logo depois de ser aprovado unanimemente, por acordo celebrado em 26 de novembro de 1778, foi levado ao Vice-rei por mãos de dois regedores, Zapiola e Juan Antonio Lezica.
No informe apresentado a Vértiz, entendia o Cabildo que o ramo da indústria saladeiril deveria correr por conta da Fazenda Real, e que o Rei deveria receber as carnes em Montevideo e Buenos Aires, ao preço de três pesos o quintal. E que era necessário, ainda, encarar os seguintes aspectos: a) a necessidade de que viessem da Espanha vários toneleiros e quatro “sujeitos inteligentes”, com conhecimentos de carnes salgadas; b) construção de armazéns em Buenos Aires e Montevideo; c) transporte de barris desde a península; d) navegação até o Rio da Prata de um número suficiente de barcos para conduzirem toda a carne elaborada; e) o envio de negros, tanto por permanência como por qualquer outro modo, porque já era por demais notória a falta que deles havia naquelas Províncias; vendo-se a vizinhança forçada a valer-se de gentes (no sentido de gentalha), ou peões, cujo trabalho é cheio de ressábios (maus costumes, manhas) e não correspondem ao salário que lhes pagam e à manutenção com eles despendida.
Quanto à questão da substituição do trabalho assalariado pelo escravo, duas décadas depois, ano de 1799, o administrador da estância Las Vacas, na Banda Oriental, uma das maiores estâncias do período do Vice-reinado, aconselhava a substituição dos peões por negros, tendo em vista os menores gastos que estes ocasionavam e porque, “beneficiada a compra de escravos, em breve tempo, com o trabalho deles, se recuperava o valor pago”.
Entendia o Cabildo que, com o auxílio dos negros, estariam abastecidos, sem prejuízo das fazendas ou da armada espanhola, e quanto à Dissertação da Sociedade de Sevilha, que o conteúdo e as regras ali propostas, não se coadunavam com o gênio e a constituição das pessoas “destes países”.
Logo após mencionar, de passagem, as possibilidades que existiam de proverem de lãs e linho-cânhamo as fábricas da Espanha, terminava sua exposição manifestando que os fundamentos expressados eram os que julgava mais convenientes para o benefício dos vizinhos e do Real Erário.
Este Informe do Cabildo pôs fim às gestões e trâmites oficiais para estabelecer um comércio regular de carnes entre Buenos Aires e a península.
O Marquês de Loreto, sucessor de Vértiz, de ideias mais liberais, se mostrou partidário de desligar a indústria saladeiril de toda e qualquer proteção da Fazenda Real. Portanto, deixou livre o estabelecimento desse ramo à vontade dos próprios fazendeiros. Dizia Loreto que o principal fomento das coisas estava em proporcioná-las; ao homem não é necessário rogar-lhe sempre para que seja empreendedor, basta somente facilitar-lhe os meios, para que ele os abrace em seu benefício.
E foi dessa forma que a indústria de carnes salgadas surgiu no Rio da Prata; tão somente por iniciativa de alguns particulares, que por sua conta enfrentaram todas as dificuldades que tal empresa lhes oferecia. Ainda que, segundo Montoya, seja justo reconhecer que seus esforços sempre contaram com a adesão e estímulo das autoridades do Vice-reinado e dos Ministros da Coroa. E, neste sentido, acrescenta Montoya, basta apenas recordar as Reais Ordens de 10 de abril de 1793 e 20 de dezembro de 1802, pelas quais as carnes salgadas ficaram liberadas de todo o direito de introdução e extração, incluindo o de alcabala, tanto no comércio com a metrópole como no de um porto a outro das Índias.
Ainda que se deva atribuir a Don Francisco Medina a instalação do primeiro saladeiro formalmente organizado que houve no Rio da Prata, desde alguns anos antes, várias pessoas já tinham ensaiado, e com bom êxito, a salga de carnes. Dentre essas, Manuel Melián, Francisco Albin e Miguel Rian, sendo que estes, quando posto em remate o provisionamento de carnes salgadas e toucinho para as Ilhas Malvinas e portos da costa patagônica, ofereceram-se para tomarem a seu cargo o abastecimento desses produtos.
Há, no Arquivo Histórico da Província de Buenos Aires, um depoimento de Manuel Melián, no qual, dá notícia de seus primeiros passos na indústria saladeiril do Rio da Prata. Diz Melián que, ao tomar conhecimento, na Espanha, onde se encontrava, que o Governo se propunha a utilizar as carnes do Rio da Prata para abastecer a Real Armada, embarcou para Buenos Aires, no ano de 1779, depois de provisonar-se, em Cádiz, de todos os informes que pôde obter sobre fábricas de carnes. E que, chegando em Buenos Aires, durante alguns meses se ocupou de verificar as campanhas em volta, e as da Banda Oriental, com a intenção de estabelecer-se. Depois de avaliar os prós e contras de um e do outro lado, decidiu-se por erguer seus ranchos, galpões e currais à margem do arroio de São Salvador, navegável por lanchas, tendo em conta, além da comodidade, que as carnes naquelas paragens, quase todas se perdiam; pois, ali, unicamente extraíam das reses, o couro, a graxa e o sebo, razão que prevaleceu, considerando que as reses lhe custariam bem menos.
Acrescenta ainda Melián, que cumprindo um pedido do Intendente, Manuel Ignacio Fernández, em princípios de 1780, embarcou em Montevideo, a bordo dos navios El Rosario e Dolores, 136 barris de carne, e que, posteriormente, provisionou muitos outros barcos.
Já, no que diz respeito aos trabalhos realizados por Francisco Albín e Miguel Rian, nos informa Montoya, que só pôde averiguar que o primeiro possuía uma manufatura de carnes salgadas, na estância localizada perto do porto das Vacas, na Banda Oriental, e que Rian era proprietário de um saladeiro que existia na jurisdição de Montevideo.

A Indústria Saladeiril no Rio da Prata no final da Dominação Espanhola

Embora os trabalhos de salga de carnes fossem promovidos com o propósito de abastecer a Real Armada e as povoações da metrópole, sem dúvida, foi o comércio com Havana e o Brasil que estimulou o desenvolvimento desta indústria no Rio da Prata.
O primeiro a realizar o comércio com Havana tinha sido Juan Ros, natural da Vila de Canet, em Barcelona, e capitão do paquete Os Três Reis, que entre os meses de março e abril de 1785 embarcou, desde Montevideo, 202 barris de carne salgada e 100 quintales de charque.
A partir desta primeira remessa feita por Juan Ros, Havana se tornou o principal mercado consumidor dos produtos dos saladeiros rioplatenses.
Outro mercado importante para as carnes do Rio da Prata foi a cidade do Rio de Janeiro, “não obstante a competência dos saladeiros, que por esses mesmos anos se fundaram no sul do Brasil”, segundo palavras de Montoya.
Ainda é Montoya quem afirma que, em 1794, os fazendeiros de Buenos Aires e Montevideo, entregaram ao Ministro Diego Gardoqui um memorial, no qual analisava os fatores adversos ao desenvolvimento do comércio de carnes, manifestando que o país se achava em condições de enviar anualmente, à Espanha, 389 embarcações de 250 a 300 toneladas carregadas de carne, sebo, cabelos e chifres.
Entre as medidas que aconselhavam para promover a indústria, se encontravam a de virem da Irlanda de 80 a 100 especialistas em salgas de carnes, e a de fundar uma Companhia Marítima, que tivesse a seu cargo o transporte dos barris de carne salgada à península.
Há algumas estatísticas de exportação de carnes salgadas durante os últimos anos da dominação espanhola. Segundo Félix de Azara, em sua obra Viagens pela América do Sul, a média anual das exportações de carnes salgadas e charque no quinquênio 1792-1796 foi de 40.759 quintales, sendo 39.281 quintales para Havana e 1.478 para a Espanha.
Já, nos anos 1798, 1799 e 1800 foram embarcados em Montevideo para os portos do Brasil e de outras colônias estrangeiras, 24.100 quintales; 16.254 quintales e 27.794 quintales respectivamente, de carne salgada.
É evidente não estar computado, nestes dados, o comércio clandestino destes produtos.


Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 09 de janeiro de 2011.

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