segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (20)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

O charque no Rio da Prata

Alguns autores têm levado a crédito do governador da Colônia do Sacramento, Francisco Naper, o pioneirismo da salga de carnes no Rio da Prata. Isto, no final do Século XVII, graças às exitosas experiências realizadas por Naper e continuadas no início do século seguinte por Sebastião Xavier da Veiga, quando, atingindo elevados níveis de produção, tornou possível exportar tais carnes para o Brasil e Portugal.
Hoje, podemos dizer que este pioneirismo coube tão somente entre os súditos da coroa portuguesa; pois, a primeira notícia que se tem a respeito de carnes salgadas, é a de que, pelo porto de Buenos Aires, no ano de 1603, foram exportados para o Brasil, Guiné e outras ilhas circunvizinhas, quinhentos quintales de cecina, quinhentas arrobas de sebo e farinha de trigo.
Quinhentos quintales de cecina era o equivalente a duas mil arrobas espanholas.
O processo de fabrico da cecina consistia no corte da carne em tiras finas e estreitas, que era secada ao sol com um pouco de sal.
Esta produção e exportação de carne salgada foi autorizada por Felipe III através da Real Cédula de 20 de agosto de 1602.
Em 1617, o Procurador Geral das Províncias do Rio da Prata, capitão Manuel de Frías, em um Memorial enviado ao Rei, assim se expressou quanto ao baixo custo da cecina: “500 quintales de cecina não valem nada, porque uma vaca vale um peso e meio; e somente para sacarem o couro, se mata uma grande quantidade de reses, sem que delas aproveitem nada mais de que o couro e sebo, porque a carne é deixada no campo, e ali não haverá quem compre a cecina; mas, vale quatro pesos o quintal, pelo trabalho de fazê-lo e o sal que gastam [...]”.
E é, exatamente pelo sal gasto, o motivo pelo qual os habitantes de Buenos Aires protestaram contra o fabrico de carnes salgadas; pois, também entre eles, havia escassez deste produto. Tanto que, em 1622, o Alcaide Ordinário, capitão Diego Páez de Clavijo, denunciou ao Cabildo, que todo o sal que chegava ao porto de Buenos Aires ia parar nas estâncias, sem que nada sobrasse para os pobres da cidade.
Nos informa Montoya (1970) que as exportações de cecina não se limitaram apenas às quantidades estabelecidas na Real Cédula de 20 de agosto de 1602; e sim, que se repetiram em diversos outros anos até pouco depois da metade do Século XVII, e disto há muitos informes; podendo se calcular em torno de setenta outras exportações desse produto, entre os anos de 1603 e 1655, com destino ao Rio de Janeiro, Pernambuco e Reino de Angola, ainda que de menores quantidades.
Também nos diz Montoya que é de se presumir, assim mesmo, que juntamente com aquelas exportações registradas pelos funcionários da coroa espanhola, outras se realizaram, quem sabe até de maior volume, de forma clandestina.
A exportação feita no ano de 1655 pôs fim à primeira etapa do comércio de carnes salgadas no Rio da Prata.
Segundo Montoya, a partir de então e por quase século e meio, como consequência da falta de vendas ao exterior, as carnes dos gados perderam, em ambas as margens do Rio da Prata, todo o valor comercial. Tamanha foi a queda, que ao descourarem os animais nas vacarias para negociarem seus couros, as carnes eram deixadas de lado e serviam tão somente para alimento das aves ou dos cães cimarrones.
Posterior a estes fatos temos, no ano de 1698, governo de Francisco Naper, o envio de várias pipas de carne salgada, desde a Colônia do Sacramento para a cidade do Porto (Portugal), e que as mesmas chegaram ao seu destino em ótimas condições.
Em correspondência datada desde a Colônia do Sacramento, aos 12 dias de maio de 1702, informava o governador, Sebastião Xavier da Veiga, ao rei D. Pedro II que, “Por ordem do governador do Rio de Janeiro [Francisco de Castro Morais], mandei 18 pipas de carne para o sustento da gente que vem para Montevideo; e me parece dizer a V. Majestade que, segundo o estado presente das coisas, se pode aqui fazer todos os sebos e carnes que forem necessárias para as naus de guerra e comboios; com muita conveniência e nenhuma dificuldade; (desde que) vindo pipas, arcos e sal, sem mais despesa do que a de se pagar aos homens que as salgarem. O que entendo ser muito conveniente [tanto] as de moura como as secas; porque não tendo osso algum, sendo bem feitas, aturam [duram] todo o tempo. Com a certeza deste aviso, determinará V. Majestade, como for servido”.
Um fato bastante curioso a respeito desta correspondência, é que dizem, e o primeiro a dizê-lo nos parece ter sido Jonathas da Costa Rego Monteiro em sua obra sobre a Colônia do Sacramento, e que depois de dito o dito, outros seguiram dizendo, que o governador Sebastião da Veiga teria dito ao Rei, do econômico que resultava preparar a carne salgada; pois não exigia nada mais que o gasto com o sal, um pouco de pólvora e as diárias pagas aos salgadores.
Vejam que, em momento algum do texto, há qualquer referência à palavra pólvora; e além do mais, que receita bem estranha seria aquela, caso necessária fosse a pólvora para a salga das carnes.
Cremos ter sido um erro paleográfico, acontecido quando da leitura e transcrição do documento.
Já do lado espanhol, a oportunidade de ser feito um maior aproveitamento das carnes do Rio da Prata, foi visto por primeira vez, pelo Capitão de Milícias de Guancabelica, Antonio Josef del Castillo, em carta enviada ao Rei em 1771.
Nessa correspondência propunha o Capitão de Milícias que se formasse uma Companhia para o comércio de carnes salgadas e sebo entre Buenos Aires e a metrópole. Nas considerações de sua proposta, mencionava o capitão del Castillo os prejuízos que sofriam os fazendeiros do Rio da Prata pelo pouco valor de seus novilhos e as vantagens que haveria de trazer-lhes, bem como ao Real Erário, a criação de uma Companhia para atender tal propósito. Acompanhava sua exposição um cálculo do que custaria a salgação e o transporte das carnes, bem como os lucros que deixariam para a Empresa na venda dos produtos na península. Como reforço de seus argumentos, fazia notar, entre outras coisas, que esse comércio poria fim ao contrabando da Colônia do Sacramento e evitaria, além do mais, a saída ao estrangeiro das grandes somas que anualmente importava a compra das carnes inglesas (MONTOYA, p. 14-15).
Nos assegura Montoya (1972), que a plausível iniciativa do capitão del Castillo foi reenviada ao Vice-rei do Peru, e posteriormente tratada pelo Conselho das Índias; porém, sem nada de positivo ter acontecido, e que no ano de 1777, passou a ser estudada pelo Cabildo de Buenos Aires.
Uma outra proposta para a salga de carnes do Rio da Prata e de Tucuman, foi apresentada ao Rei, em 1776, pelo Oficial Real Interino de La Paz, Pedro Nolasco Crespo, e comunicada imediatamente pelo Ministro Gálvez às autoridades de Buenos Aires.
Consultado sobre o assunto o Honorável Cabildo e o Tenente do Rei, Diego de Salas, este último se dirigiu aos principais fazendeiros bonaerenses, recolhendo-lhes sua opinião quanto à quantidade de quintales que se poderiam exportar anualmente, o preço de venda e a época que consideravam mais oportuna para os trabalhos.
Diz Montoya que 21 fazendeiros responderam as perguntas; porém, de todas as respostas recebidas poucas trouxeram alguma luz à matéria.
O Cabildo, por sua parte, expôs seus pontos de vista em Sessão aprovada em 29 de outubro de 1777. Acreditavam seus componentes que era possível produzir cem mil quintales de carnes salgadas, desde que cumpridas as seguintes condições: que por conta do Real Erário viessem da Espanha os barris para o envase das carnes, e estes seriam distribuídos entre os fazendeiros; teriam de construir armazéns para receberem os barris; entregues e reconhecidas as carnes, se pagaria o valor à vista, e, a partir disso, ficariam por conta da Fazenda Real; os trabalhos de salgas se realizariam do começo de abril até o mês de setembro; o preço das carnes, levando em conta as conveniências de estabelecer este ramo de negócio tão útil aos povoadores, se poderia estabelecer em três pesos o quintal.
Tais discussões e pretensões, não deram em nada.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 02 de janeiro de 2010.

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (19)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Veiga Cabral, por sua vez, encaminhou ao secretário, D. Rodrigo de Souza Coutinho, os requerimentos assinados por cinquenta e oito suplicantes.
Dentre as já tão conhecidas reclamações, queixavam-se, também, de “incomparável prejuízo que têm sofrido e estão sofrendo com a permissão facultada aos espanhóis de navegarem do porto de Montevideo navios carregados de gêneros e efeitos de primeira necessidade, e aportarem no da Capital do Estado, cidade do Rio de Janeiro, aonde, despachando-os pela Alfândega, conseguem a descarga e venda dos produtos; bem como carregarem ali outros gêneros e escravos, que com eles retornam ao porto de Montevideo. E que, de cujos acontecimentos, segue de ficarem os Suplicantes com suas culturas de trigo, farinhas, charqueações de gados e couramas, efeitos que pela Barra desta Capitania, os podem transportar apenas para três portos do Brasil, que vem a ser o daquela cidade do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, nos quais, com a venda de seus produtos pagam os Suplicantes os respectivos direitos, fretes e seus credores. Portanto, pedem que se vete aos espanhóis a permissão de carregarem tecidos e escravos, estes para o aumento das culturas, e aqueles para os seus comércios e uso de suas famílias e obrigações; e que possam os Suplicantes voltarem conduzindo ao mesmo tempo o sal que necessitam para darem continuidade às suas charqueações e suprimento desta Capitania [...]”.
Encerravam o requerimento pedindo que fossem expressamente declaradas e ampliadas em seu inteiro vigor as leis procedentes e ordens promulgadas para não haver, no Brasil, comércio com nações estrangeiras e que também fosse vedada inteiramente a “exportação dos escravos para fora destes domínios, que tanto dano causa ao Estado e ao aumento da Agricultura”.
Tendo sido solicitado, por ordem de Sua Alteza Real, que o Vice-rei do Brasil informasse, com um cálculo aproximado, a quantidade anual de sal necessário para atender o consumo em sua Capitania e demais distritos de sua jurisdição, incluindo a Capitania do Rio Grande, tratou o Vice-rei de responder ao Ofício de 27 de agosto de 1799, enviado pelo secretário de estado da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Souza Coutinho, dizendo que consultado o Administrador do Contrato, “pois ninguém poderia ter um individual conhecimento da extração, que este gênero costuma ter, tanto para os diferentes portos e distritos desta Capitania, como para as do Sertão e também a do Rio Grande, pode-se verificar no papel que incluso remeto a V. Exª., que são necessários cento e cinquenta e nove mil alqueires, levando-se em conta o que lembra o Administrador, a fim de não haver falta deste gênero”.
Aproveitando-nos do cálculo feito pelo administrador Luiz Antônio Ferreira, aos oito dias do mês de fevereiro de 1800, veremos o consumo de sal que anualmente alguns lugares do Brasil consumiam naquela época.
Diz o Contratador que “falando com o mais profundo respeito, ponho na presença de V. Exª., que se carece para as Minas, repartido pelos Corrieiros [ou correeiros: Oficiais, que fazem obras de couro, correias e outros arreios de cavalgar ou para bestas de carga], sessenta mil alqueires, para a Vila de Parati, trinta mil alqueires; para o Continente do Rio Grande, trinta mil alqueires [observe-se que o Rio Grande inteiro, consumia a mesma quantidade que a Vila de Parati]; para os demais portos que servem a esta Capital, vinte e cinco mil alqueires; para esta Cidade e seus recôncavos, quatorze mil alqueires, perfazendo, assim, o total de cento e cinquenta e nove mil alqueires de sal por ano, não levando em conta o aumento dos povos, e para não haver falta, é necessário que os navios que conduzirem o dito gênero da Europa tragam mais do que suas lotações, única forma de não haver falência em suprir as Capitanias; pois do contrário padecerão da falta, o que em outro tempo já aconteceu”.
Para finalizar esta primeira parte de nosso trabalho, que compreendeu os anos de 1780 a 1800, vejamos o que estava acontecendo com o bergantim Expedição, que desde setembro de 1799, pretendia trazer sal para o Continente.
Aos 19 dias do mês de julho de 1800, o oficial do Quartel-General do Porto, D. João Correia de Sá, informava por Ofício ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, ter recebido pelo expediente do dia 14 daquele mês, a determinação de que Sua Alteza Real, o Príncipe Regente, concedera para que o bergantim Expedição pudesse “fazer viagem deste Porto, para o Rio Grande de S. Pedro, sem dependência de comboio, indo competentemente armado, e com estado de se defender dos Corsários inimigos”.
A razão do bergantim Expedição, propriedade da Companhia de Carvalho, Silva e Ferreira, estar “competentemente armado”, deve-se ao fato de seus proprietários terem recebido permissão para terem a bordo 20 barris de pólvora para defesa da embarcação e tripulantes, bem como do restante da carga composta por 30 pipas de vinho e trezentos ou mais moios de sal, que pretendiam trazer para o Rio Grande.
Já melhor sorte não teve o Administrador do Contrato do Sal no Rio de Janeiro, pois, por ordem de D. Rodrigo de Souza Coutinho, foi o mesmo substituído por João Marcos Vieira, administrador do Contrato da Pesca das Baleias, apesar da defesa feita pelo Vice-rei, o Conde de Rezende, na qual informou que Luiz Antônio Ferreira, acusado de ladrão, fora vítima de uma rede de intrigas promovida por comerciantes que pretendiam, aproveitando-se da situação, monopolizarem o sal, o que levara o Vice-rei a tomar providências nomeando um juiz conservador acompanhado com guarda militar para presidir a distribuição do sal pelas populações.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 19 de dezembro de 2010.

domingo, 12 de dezembro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (18)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

As Salinas de Cabo Frio voltam ao monopólio da Coroa portuguesa

Em Ofício de 30 de maio de 1799, enviado pelo Vice-rei, o Conde de Rezende, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, lamentava ele que depois de ter intentado promover o benefício das Salinas de Cabo Frio, persuadido de que resultaria em grande utilidade e proveito aos moradores daquele Distrito, regozijava-se de saber, no seu entender, que aquele estabelecimento e ramo de comércio seria permanente, dada a eficácia e interesse despertado em todos os habitantes; entretanto, tendo recebido o Aviso de 28 de agosto do mesmo ano, em um dos seus artigos informava que, não obstante a necessidade de sal justificar a abertura das Salinas, mandara Sua Majestade dizer que não queria mais que se trabalhassem tais Salinas, se não por conta de sua Real Fazenda; vedando, portanto, aos particulares continuarem suas empresas e, em consequência daquele Aviso, havia determinado que os Oficiais encarregados da direção daquelas Salinas, depois de informarem à Câmara o que Sua Majestade resolvera, mandasse imediatamente a Câmara suspender todo o trabalho ali desenvolvido; porém, como não recebera instruções de como iriam funcionar por conta da Real Fazenda, que ficassem as Salinas no estado primitivo, até que recebessem novas Ordens.
Apesar de todas as providências, infortúnios e promessas, as dificuldades dos moradores, comerciantes e charqueadores do Continente em receberem sal, continuavam.
Na Corte, a Companhia de Carvalho, Silva & Pereira, comerciantes na praça da cidade do Porto, obtiveram, por graça de Sua Alteza Real, permissão para levarem em “direitura” ao Rio Grande de S. Pedro trezentos ou mais moios de sal no bergantim Expedição. Em vista disto, lhes foi passado o competente passaporte de viagem, devidamente assinado pelo secretário de estado da Marinha e Ultramar em 04 de setembro de 1799; o que não foi suficiente, pois o Cirurgião responsável, após a vistoria, lhes embaraçou o embarque com o fundamento de não se achar aprovado segundo as novas ordens expedidas no Proto Medicato; tal embarcação e outros percalços burocráticos só foram resolvidos em agosto de 1800, quando, ao que parece, puderam empreender a viagem.
A escassez de sal não atingia somente o Continente de São Pedro. Também a Capitania do Rio de Janeiro, sede do Vice-rei, queixava-se inclusive do Administrador encarregado da distribuição do produto. E por tal motivo, o secretário de estado da Marinha e Ultramar fez chegar ao Vice-rei, o Conde de Rezende, um Ofício pedindo explicações sobre tais abusos.
Informou o Vice-rei ao secretário, que de posse do Ofício de nº 39, tomou conhecimento do parágrafo de uma carta enviada desde o Rio de Janeiro sobre os abusos praticados pelo Administrador do Contrato do Sal, naquela Cidade; e que tomasse ele “as necessárias providências para que cessassem tão intoleráveis abusos”.
Quanto a isto, tinha ele a informar, que não querendo justificar a conduta do referido Administrador mas, “julgando pelos sucessos, posso certificar a V. Exª., que Luiz Antônio Ferreira foi o primeiro a requerer-me providências para se distribuir, com igualdade, a diminuta porção de sal que existia nos Armazéns, fosse por falta de abundantes remessas de Lisboa, ou pelos contratempos havidos com os navios”.
Disse, também, que a ele haviam chegado, pelo povo, tais rumores em desabono de Luiz Antônio Ferreira; porém, tais acusações não tinham sido comprovadas e tampouco existia fundamentos que justificassem contra o Administrado, alguma represália que lhe embaraçasse a distribuição do sal, “que até se achava regulada para os Distritos desta Cidade, segundo o consumo de cada um”. Disse ainda o Vice-rei que havia motivos para se pensar que tais rumores procedessem de “homens ambiciosos aproveitando-se da conjuntura, apesar da calamidade do povo, constituindo monopólios, vendendo por preços exorbitantes aquelas porções de sal, que por eles e por interpostas pessoas, compravam debaixo de diferentes pretextos e afetadas alegações”.
A seguir, acrescenta o Vice-rei, que à medida que as remessas de sal foram chegando de Lisboa, “todo o queixume do povo, depois que francamente se entrou a vender o sobredito gênero, foi também cessando”.
Finalizando a resposta ao Secretário, disse o Vice-rei que nestas circunstâncias, lhe havia requerido o Administrador, Luiz Antônio Ferreira, a nomeação de um sócio, que participasse com ele na administração, a fim de justificar os procedimentos de suas atribuições; mas, “nem V. Exª. me avisa da necessidade desta providência; pois apenas me remete a cópia do parágrafo de uma carta escrita de um modo pouco sério e pouco digno de crédito; nem eu devo desautorizar a este homem, por suposições, dando a perceber na pretendida nomeação o meu conceito que dele se forma. Havendo ainda a razão de que sendo a escolha de um sócio totalmente minha poderia recair essa escolha em suspeito, correndo-se ainda o risco de que, mais por ignorância do que por malícia, viesse esse a cometer erros prejudiciais ao Contrato. E no caso de ser nomeado por indicação ou influência do Administrador, não se poderia remediar a desordem, caso o novo sócio mantivesse o mesmo sistema de administração”.
Assinou e datou a resposta aos 29 dias do mês de novembro de 1799, na certeza de ter dado providências às circunstâncias que se fizeram necessárias, e que nada moveria sem que recebesse ordem ou sobreviesse motivo urgente que o obrigasse a ter de escolher entre o bem do “povo inteiro, e a vantagem de um único particular”.
Já na Capitania de São Pedro, os vassalos, agora do Príncipe Regente, pediam ao governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara que os protegesse das embarcações que iam em direção ao porto de Montevideo “debaixo do fingido pretexto de arribadas forçadas” e, lá, carregavam couros, farinhas e carnes salgadas, “com sensível abatimento nos preços”, em direção ao Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, ocasionando graves prejuízos à classe dos comerciantes, lavradores e fazendeiros da capitania do Rio Grande, responsáveis pela “abundância necessária para abastecer as outras acima referidas”.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 12 de dezembro de 2010.

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (17)*




A. F. Monquelat
V. Marcolla

Por ordem de Sua Majestade, é abolido o monopólio do sal no Brasil

Informado por Ofício de 4 de maio de 1795, no qual o secretário de estado dos Negócios Estrangeiros da Guerra e interino da Marinha e Ultramar, Luiz Pinto de Souza Coutinho, dizia que por Ordem de Sua Majestade, convencida de que os atrasos do Estado do Brasil e suas Colônias não fora outro se não a ocorrência de pesados monopólios exercidos na série de longos anos, tanto no do sal, como nos direitos impostos sobre o ferro e a introdução de escravos, além de outras restrições fiscais, ficava abolido o Contrato do Sal, de forma que ficavam livres todas as Salinas que se pudessem estabelecer na Capitania do Rio de Janeiro, delas podendo todos os colonos usufruir e beneficiar; no entanto, tal determinação deveria ser compensada por um aumento dos impostos sobre os mesmos gêneros, a título de ressarcimento em prol do Real Erário.
Em face de tal Ofício, tratou o Vice-rei de comunicar ao secretário de Estado do Conselho, conforme correspondência de 31 de outubro do mesmo ano, que no cumprimento das Ordens de Sua Majestade, havia tomado algumas providências, e, dentre elas, o ouvir e acertar com as Câmaras a melhor forma de aplicarem e se adequarem às novas medidas.
No que tangia ao novo imposto sobre o sal, deliberaram, “depois de terem calculado miudamente este importante artigo, por partes integrais, estabelecendo um termo médio, por não haver um mais exato que servisse de combinação, respectiva à certeza física de números de alqueires de sal, que anualmente nesta Capitania do Rio de Janeiro, seus termos e outras correspondentes se consome, acertaram, de comum acordo, que se determinasse, em cada alqueire de sal proveniente de Portugal, a imposição de 80 réis, para que deste modo ficasse indenizado o donativo que o Contratador pagava a Sua Majestade; além de outra igual quantia, que naquela cidade deveria ser paga no Real Erário, sendo porém o referido donativo pago por entrada, e cobrado da mesma forma que se cobrava os donativos das demais fazendas. E que as Salinas do Brasil, ou beneficiadas ou já existentes, ou novamente estabelecidas e aumentadas pagassem somente 80 réis da nova imposição, por alqueire, livre de dízima, dízimos ou algum outro direito.
Acertaram, também, que para aquele fim seriam sempre tombadas as novas Salinas antes da extração do sal, avaliadas por pessoas peritas e juramentadas pelas Câmaras a que pertencessem, para que nas mesmas Fábricas se cobrasse a imposição arbitrada por alqueire, na conformidade da medida do País. E que depois de satisfeita a imposição que viesse a caber sobre a respectiva Salina, pudesse ser transportado o sal para qualquer parte, levando Guia onde constasse que pagara o Direito estipulado; suplicavam ao mesmo tempo a S. Majestade, a faculdade e liberdade dos chãos das Marinhas, onde as Salinas estivessem ou se criassem, em benefício dos donos das terras em cujas confrontações ou testadas ficassem, recorrendo os fabricantes às Câmaras competentes, licença para o estabelecimento e tombo [registro] das suas Salinas, o que mais claramente se manifesta nos documentos apontados e seguidos do número 1º até o 4º”, (os documentos mencionados pelo Vice-rei não estavam anexados ao Ofício).
As constantes súplicas e reivindicações feitas devido à falta de sal no Estado do Brasil levaram o secretário de estado da Marinha e Ultramar, Dom Rodrigo de Souza Coutinho, a pressionar o Contratador do gênero, Joaquim Pedro Quintela & Companhia, no sentido de resolver o problema, enviando sal para o Brasil.
Tratou logo o Contratador de, aos 29 dias do mês de agosto de 1798, explicar ao Secretário os motivos do atraso e as providências que tomara para resolver o assunto comunicando que, atendendo a respeitável Ordem de S. Majestade, no sentido de que fosse enviado para o Brasil o maior número possível de embarcações com sal, já estavam estas por sair. Disse, ainda, que a atitude do Vice-rei foi muito acertada e justa em ter determinado mandar beneficiar a cultura do sal nas Salinas de Cabo Frio, visto que, “deste gênero de tanta necessidade experimenta grande penúria todo o Brasil, por causa da Guerra, e não por culpa ou omissão dos Contratadores, os quais, na maior exportação e venda do sal, têm o seu negócio”.
Justificou, também, o Contratador, dizendo que ele e seus sócios, pela falta de navios, não conseguiram embarcar a quantidade de sal que desejavam, e que por isto já tinham dado ordens a todos os Administradores do Contrato daquele Continente [do Brasil], no sentido de que se alguns particulares quisessem estabelecer novas Salinas ou engrandecer as antigas, havendo o beneplácito dos Governos, não lhes fosse feito embaraço algum; e isto, era tudo o que podiam determinar, pois mais do que isto fosse uma contravenção ao Contrato.
Os Contratadores encerravam o documento dizendo que os comboios, que de Lisboa partiram em janeiro e maio do mesmo ano, carregando todo o sal possível e acima das lotações que os navios eram obrigados a transportar, por desgraça haviam caído nas mãos dos franceses, inclusive o Fossa Lamas, que ia em direção ao Rio de Janeiro. Porém, apesar de todo o infortúnio, estavam despachando para o Rio de Janeiro a galera Águia da América, que por causa da sua fraca construção carregava tão somente 120 moios de sal; e que para os demais portos do Brasil, no mesmo comboio, estavam preparando as maiores quantidades possíveis de serem transportadas pelos navios; e esperavam também, a curto prazo, sendo bem sucedidos, enviar um grande número de navios carregados de sal.
Dias depois (12.09.1798), voltaram os Contratadores a comunicarem ao Secretário, que dando cumprimento ao Aviso de 6 de setembro, mandado expedir por Sua Alteza Real, eles haviam decidido, pelos meios mais próprios e rápidos, fazerem envio de maiores remessas de sal para o Rio de Janeiro e que tal até então não havia ocorrido, pelo fato dos proprietários e mestres de navios de frete preferirem cargas para os portos da Bahia e Pernambuco.
Em função desta preferência, tinham feito várias diligências para comprar alguns navios; mas, com muito custo, só haviam conseguido comprar um único navio. Um navio americano, denominado de Ana Catarina, e que o mesmo já se encontrava pronto para seguir viagem naquela mesma semana, carregando 600 moios de sal. E, graças à proteção do Secretário, tinham conseguido que o negociante João Pereira Caldas, mudasse o destino das viagens que projetava fazer para a Bahia e Pernambuco com os navios Fênix e Santa Cruz, dos quais era proprietário, e os enviasse para o Rio de Janeiro, carregando, entre ambos, 1.000 moios de sal.
Disseram, também, que já haviam dado ordens aos correspondentes em Setúbal e Porto para que diligenciassem o fretamento ou, se lhes fosse possível, comprassem alguns iates próprios para semelhante expedição.
Encerravam comunicando que graças ao bom êxito da expedição anterior ao Brasil, os navios Diana e Jacaré, dos quais eram proprietários, tão logo descarregassem, os fariam aprontar; e cada um carregaria o maior volume de sal que pudesse, para partirem em comboio, com destino ao Rio de Janeiro e que, à vista de suas extraordinárias diligências, “conhecerá V. Exª., qual seja o desejo de cumprirmos exatamente com os nossos deveres, e com as determinações de Sua Majestade”.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 05 de dezembro de 2010.