domingo, 7 de novembro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (12)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores


Feito o comentário sobre o sal do Prata, voltamos ao Continente de São Pedro, onde novamente vamos encontrar os vassalos de Sua Majestade a representar, desta vez, contra o Contratador de Tabaco, Manoel Joaquim Ribeiro, que estava taxando as carnes salgadas que os suplicantes conduziam à Bahia.
Na Representação feita, após uma delongada introdução, diziam que passavam brevemente por “estas coisas tão sabidas e patentes à alta compreensão” de Sua Majestade, mas que não podiam e nem deviam omitir que o fomento dado à exportação das carnes salgadas do Rio Grande para aquela Praça, e as demais do Continente, em que se empregavam mais de 140 Sumacas, “de muitas mil arrobas, que têm feito baratear, pelo seu concurso [afluência], a subsistência dos pobres escravos”. Do que resultava a ampliação da cultura do tabaco e do açúcar, cujos fazendeiros, animados pelo baixo preço das carnes, quase que único alimento dos cativos, cada dia se multiplicavam e prosperavam em função da diminuição dos custos da manutenção de seus escravos, que anteriormente eram forçados à suma injúria e iniquidade de faltarem “àqueles desgraçados com o sustento, não só abundante, se não, às vezes necessário”, servindo tudo para que o Régio Erário percebesse tão crescentes vantagens e não menores no Rio Grande, onde, além do dízimo que se pagava do gado “em pé”, havia ainda o bem conhecido tributo do Quinto dos Couros, que era de “cada cinco, um”. Ou seja, vinte por cento.
A seguir, apelavam no sentido de quais motivos haveria para o “pio e maternal afeto de Sua Majestade, [para o] amor que professa aos seus fiéis vassalos” como o de vê-los multiplicarem prosperamente, acrescentando nas suas felicidades e nas de suas famílias, a sólida grandeza do Estado, e ver “a mais horrível injustiça com que se esfaima [o mesmo que esfomear] a infeliz escravidão, desviada das tristes e desconfortadas choças, que mal abrigam a nudez da fraqueza, contra as injúrias da Natureza e dos homens”.
Prosseguindo, pediam que não fosse considerado como hipérbole o que antes haviam dito; mas, grande parte da Costa e do Sertão do Brasil padecia há seis ou sete meses da falta de carnes; pois, devido às chuvas e inundações do inverno ou pelas secas do estio, impedia que as boiadas descessem para aqueles lugares. E, portanto, “as carnes curadas [o mesmo que salgadas] eram o único alimento dos pobres, mesmo os das cidades” e em todo o ano, as são para a escravatura nas ditas povoações, por mais baixo preço e por indispensável necessidade aos Engenhos afastados da “borda da água [interior] aos quais não chega gênero algum de pescado, geralmente caro, onde o há”.
Acrescentavam, a isto, não haver naquelas paragens, por falta de indústria, pela natureza dos terrenos e pela incompatibilidade dos serviços, abundância de grãos, farinhas, raízes, legumes, hortaliças ou frutos, que ajudassem na manutenção e que, portanto, eram as causas que concorriam para a grande mortandade, dia a dia, dos escravizados, “com lástima da Humanidade, tanta perda aos particulares e ao Estado”.
Os Suplicantes, entre os quais José Pinto Martins, encerravam a Representação, esperançosos de que Sua Majestade pusesse fim aos danos, opressões e vexames que acabavam de expor, ocasionados pelo Contratador de Tabaco.
Neste ponto, entendemos necessárias duas observações: a primeira, é a de que o sal utilizado nas charqueadas rio-grandenses não vinha de Cádiz; assim como, baseados em Alexandre Inácio da Silveira, o sal oriundo da Europa, mais precisamente de Portugal, “estava provado por experiência observada” não ser o melhor para a conservação das carnes.
A segunda observação diz respeito ao consumo de charque que, até então, tínhamos como alimento de consumo nas embarcações portuguesas e de escravos, tanto aqui quanto nos países do prata. Entre estes últimos sabemos que, além dos escravos, era também consumido a bordo das embarcações, tanto privadas quanto nas da real armada espanhola. Já no Brasil podemos, conforme depoimento dos suplicantes da representação acima transcrita, acrescentar o uso das “carnes curadas como alimento dos pobres, mesmo os das cidades”.
Durante o ano de 1797, nova súplica foi encaminhada à rainha. Diziam os vassalos que há quatro anos sucessivos, em uma contínua falta e absoluta carência de sal, o dilatado país dos Suplicantes, além dos incômodos a que os têm condenado a privação de um artigo tornado de primeira necessidade no uso da vida, iam eles, os povos de Sua Majestade, sofrendo a vexação e incalculável perdas por não poderem matar os seus gados, pelo fato de lhes faltar sal para salgarem as carnes. Em vista disto, diziam ainda os Suplicantes que as reses que habitualmente eram abatidas com quatro anos de idade, se encontravam com cerca de dez anos, o que resultava em prejuízo de todos. Finalizavam pedindo a graça de poderem importar para o Continente seiscentos moios de sal por ano, a contar inclusive do ano do pedido. Dentre os signatários suplicantes estava, e por primeira vez, o nome de uma mulher: Dona Isabel Francisca da Silveira (viúva do capitão-mor Bento Manoel da Rocha).
O que bem ilustra a total carência de sal é o fato de ter sido o capitão do Bergantim Nossa Senhora da Conceição, Santo Antônio e Almas, quem salgou a carne das 20 barricas transportadas na viagem de volta a Lisboa, usando para isso o salitre que havia a bordo. Este episódio, conforme ofício de 12 de dezembro de 1797, assinado por Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, ocorreu em Rio Grande. Tal situação, a pedido do intendente-geral da Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique, foi levada ao conhecimento do secretário de estado da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Souza Coutinho, através de audiência em Lisboa.
Neste mesmo dezembro de 1797, foi pedido a José de Saldanha, pelo governo da capitania, dentre outras experiências, a do Nitro, ou Salitre artificial, caso não houvesse o natural. Tal encargo originou a Memória Sobre o Sal de Glauber, que José de Saldanha conclui em 10 de março de 1798 na cidade de Rio Pardo.
Saldanha, logo no início de seu trabalho, diz que “[...], lembrei-me de uma particular Mina de terras Salinas, que eu tinha encontrado, havia seis anos, em um dos meus freqüentes giros pelos vastos campos desta fronteira do Rio Pardo. E posto que, já há mais tempo, as quisesse analisar quimicamente, contudo, ou por falta de sossego e proporções, ou por julgar que estariam impregnadas do Sal comum, como se supunha vulgarmente, ficaram até aqui, em esquecimento.
Na atual conjuntura, quando se me apresentou uma porção de 35 libras das referidas terras e seus torrões, lexiviei parte com água pura e obtive da cristalização, por meio do repouso e frio, uns cristais em figuras de lâminas de quatro lados, alguns, terminados em prismas e inclinados, o que não me levou a despersuadir que seriam os Cristais do Nitro impuro; pois que, Valério, na sua Mineralogia, assim os nota. Porém, logo que vi, que expostos ao ar seco, se reduziam a farinha, a maneira de polvilho, transformando-se em um sabor salgado quente, o salgado que antes tinham. Aí, mudei de ideia e entrei a analisar tanto os cristais que havia conseguido, como as próprias terras Salinas. E na segunda experiência, principiei a conjecturar ser este o verdadeiro Sal mirabile Glauberi – vulgarmente denominado Sal de Glauber, ou Sal admirável” (grifos nossos).
E segue Saldanha descrevendo suas experiências nas nove páginas manuscritas: “O Sal de Glauber, extraído da fonte salgada do lugar denominado Epson, cinco léguas distante de Londres. Ou ser o intitulado Sal de Sedlitz, ou o que se extrai das Lagoas Salgadas de França; porém, de nenhuma sorte, o que se recolhe em Schot das Salinas de Lorraine e Franche-Conte, porque esse é muito puro, e o mais legítimo; talvez igual ao que acabamos de descobrir nesta província americana, sobre o qual nada mais tem que discernir o meu limitado engenho”. Mesmo assim, a descoberta de Saldanha não resolveu o problema do sal na Capitania de São Pedro.


Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 31 de outubro de 2010.

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