domingo, 24 de outubro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (7)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

A indústria de carnes salgadas entre os súditos da coroa espanhola


Levantaram no lugar uma olaria a serviço da construção da infra-estrutura. Junto a ela se achavam outros dois ranchos de palha onde viviam os mestres oleiros.
Um novo galpão cumpria três funções de uma só vez: aposentos de escravos, cozinha e forno de pão, oco este último, que ao mesmo tempo servia para fabricação subsidiária de velas de sebo. Para este fim, contava também com duas caldeiras e um grande tacho, todo de cobre, material de que estavam construídos os demais implementos.
Uma ramada descoberta, vizinha do saladero, permitia, entretanto, pendurar sebo, graxa e ocasionalmente alguns coelhos ou outros produtos da abundante caça que na época era pródiga à silvestre campanha.
Completavam o entorno da fábrica os currais imediatos ao galpão do matadouro, um para o gado e outro para cavalos ao que se unia a uma certa distância um novo e grande curral destinado à marcação dos animais.

Los aposentos del patrón:
Quase a uma légua deste núcleo, próximo à Vila Nuestra Señora del Rosario, se achava outro, que constituía praticamente o casco da estância. Ali vivia Medina, em um rancho que não se diferenciava muito dos anteriores: era também de pau a pique, telhado com junco e forrado em ambos lados com mezcla de bosta. Não faltou ao seu redor a horta onde alguns servidores cultivavam hortaliças e atendiam 160 árvores frutíferas, cercadas com madeira para evitar danos dos animais soltos.
Um novo rancho estava destinado à cozinha, outro a depósito e o quarto abrigava lá pulpería, explorada pelo compadre Juan Viola. As quatro precárias construções formavam a pequena praça do conjunto. Um mais, também de pau a pique e barro, que ficava ao fundo da horta, era a residência do capataz e tinha contíguo o aposento “de los negros”.
Se distribuíam também no campo da estância quatro postos, com seus respectivos ranchos e currais. Os designavam respectivamente Santíssima Trinidad, de los mojones, de las cabeceras del Sauce y San Francisco de Borja.
Certos galpões já existentes desde os tempos dos Bethlemitas, junto a boca del Rosario, serviram como depósitos para couros e carnes em processamento. Por sua vez, outro rancho agregado pela administración Medina no Puerto del Sauce, lugar de embarque e desembarque, continha as reservas de sal empregadas no estabelecimento, servindo ainda como moradia temporária a tripulantes dos barcos da empresa. Um armazém igualmente novo, de artigos de consumo para este pessoal e reparação ou auxílio das embarcações, completava a infra-estrutura da zona portuaria del Colla.
À parte de toda esta infra-estrutura, majoritariamente montada por Medina e às suas ordens, o empreendedor castelhano contou com uma base teórico-prática de suma importância. Tinha o empresário um conhecimento bastante apreciável. Entre seus papéis foram encontrados cópias de um método para fazer tasajo, um volume com apontamentos e curiosidades sobre salga de carnes, aproveitamento de graxas, sebos, etc., assim como uma carta, que em português lhe escreveu José I. Arouche, em torno desse tipo de estabelecimento.
Também possuía alguns conhecimentos práticos, resultado do já citado trabalho empírico, inscrito entre a série de ensaios menores escritos entre o final da década de 70 e começos da seguinte, na região.
Contou Medina com abundante pessoal, em todo sentido misto: mão de obra masculina e feminina, livre e escrava (quizá con predominio cuantitativo de esta última), estrangeira e nacional (aquela com participação de especialistas ingleses que assumiram a direção técnica do estabelecimento fabril). E, por suposto, dispôs de homens de confiança, encabeçados pelo mayordomo Blas de Benancio y su capataz mayor, Sebastián González. O número total de pessoas empregadas na fábrica foi calculado por Francisco de Paula Sanz nas já citadas duas centenas, quando a visitou em outubro de 1787. A estas duas centenas se deve somar os peões e posteiros da estância, pessoal embarcado, assim como tarefistas usados para transladar gado desde las Misiones ou outras tarefas temporárias. Os escravos comprados superaram o número de 100, dadas as aquisições feitas a Manuel Cayetano Pacheco (que posteriormente viria a reclamar pelos 119 negros vendidos e não pagos por Medina).
Ainda que os inventários realizados após a morte do castelhano – um ano depois de sua instalação en el Colla – não incluam mais de uma vintena, é sabido, graças a Arturo Ariel Bentancur, que o comprovou através do caso do cuidador dos porcos, apresado cerca de Minas pouco depois de morir el amo, que muitos escravos fugiram depois do fato e consequente falta de mandos abruptamente producida.
Fizemos questão de destacar as palavras escravos, escrava e os números dessa mão de obra não assalariada empregada no saladero de Medina, porque temos nos deparado, já por diversas vezes, com a explicação pueril de que o charque produzido nos saladeros rioplatenses era de melhor qualidade, porque estes usavam somente mão de obra livre e especializada, o que não foi totalmente verdadeiro. Mas este é um assunto do qual trataremos em outra oportunidade, quando vermos a locação de escravos tanto nos saladeros quanto nas charqueadas.
De qualquer forma, se considerarmos a mão de obra empregada nos saladeros argentinos, uruguaios ou rio-grandenses muito posteriores, que andava entre 40 e 70 pessoas, teremos uma idéia da grandiosidade do projeto saladeril de Medina.
Chegada a temporada de 1787, mesmo com projeto inconcluso, iniciaram as atividades. Os operários e três especialistas ingleses empregaram seus braços e talento para que funcionasse um grande saladero. A tecnologia usada deu de pronto frutos de excelente qualidade.
Medina “descubrió el secreto” – como recordaria anos depois o vice-rei Arredondo – e as carnes rioplatenses venceram o mito de suas condições inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência das do Norte. Em nada mais consistia – acrescentava o monarca com relação à fórmula vencedora – “que en sublimar la salmuera del barril con una corta dosis de sal nitro. E, assim sendo, nos diz ainda Bentancur que “la producción comenzaba a apilarse en los galpones del Colla.
Mas nem tudo ali era favorável... El pionero, soporte de tantos sueños, había sido trasladado de urgencia a Buenos Aires por la aparición de los primeros síntomas de un tipo de hidropesía, convertida en freno fatal en la carrera hacia el mayor éxito empresarial de su vida.
Ao entrar agosto, a saúde de Medina se agravou de tal forma, que as únicas esperanças estavam depositadas en un milagro de la Medicina. O milagre não veio, e Medina aos treze dias do mesmo mês morreu.
Lentamente foram obtendo crédito as carnes da Banda Oriental. Las exportaciones se triplicaron entre 1788 (año de la muerte de Medina) y el seguiente, al pasar de 10.135 quintales a 33.327.
O processo de expansão se deu praticamente de forma paralela e em tempos muito próximos à ação de Medina. O padre Pérez Castellanos, “en su conocida carta de 1787 se refería a otros dos saladeros cercanos a Montevideo y contemporaneos al del Colla […] Uno de esos establecimientos montevideanos era el de Francisco Antonio Maciel, ubicado a orillas del Miguelete y con varios anexos de actividades similares.
Na mesma época tiveram igualmente fábricas, nas imediações de Montevideo, Miguel Ryan, Juan Camilo Trápani e Juan Balbín de Vallejo. O primeiro deles foi autorizado por Ortega para instalar um saladero a meia légua da cidade, pelo que foi embargado e paralisado em 1788, quando processaram ao funcionário infiel por sua complicação no desfalque da Aduana de Buenos Aires. Ryan era de ascendência irlandesa e natural de Madri, com experiência “em salazón de carnes en Chile. Aquí comenzó por 1780, instalado en el Arroyo Seco, donde se asentó definitivamente.

Continua...

Referências

MONQUELAT, A. F. Don Francisco Medina, el tasajo y Pelotas. In: ______. Notas à margem da história da escravidão. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2009. p. 71-100.
____________________________________________
Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 26 de setembro de 2010.

Nenhum comentário: