domingo, 24 de outubro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (6)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

A indústria de carnes salgadas entre os súditos da coroa espanhola


Finalizando a oferta, Medina fixava a data para o eventual começo da empresa, pelo menos um ano depois, considerando que se achava precisamente na estação mais propícia para a atividade, já que precisaria da refrigeração natural como garantia indispensável para conservar as carnes.
Mas o hombre recto, recente titular da cadeira de vice-rei, interpôs seu veto às pretensões de Medina. Entendia, o Marquês de Loreto, que as verdadeiras intenções do castellano eram orientadas para a futura prática do contrabando na Ensenada de Castillos, pois o simples fato de existir um porto na estância pretendida era, no entendimento de Loreto, suficiente obstáculo à venda, pois “Además poco frecuentado, difícil su acceso, apartada su ubicación y lejano por tierra, lo estimaba más proporcionado para um giro clandestino que, sin intentarlo Medina, sería facil y podría incurrirlo outro poseedor de futuro.
Loreto, por sua vez, em uma nova proposta, reafirmava como de seu próprio interesse o projeto saladeril, desde que a participação de Medina se desse por via subsidiária. Elogiava a importância da salga de carnes, fazendo menção a experiências anteriores de menor porte já levadas a cabo no ramo. Dentro do mesmo documento incrustou uma nova proposta que havia recebido de Manuel Melián, mais relacionado com o ramo do que Medina, porque já possuía Melián um pequeno saladero às margens do rio San Salvador. Seus antecedentes na atividade saladeril remontavam ao próprio porto de Cádiz onde dizia já haver provisionado carnes e alguns barcos. Desde 1779 se achava no Rio da Prata instalado no referido local, que entendeu apropriado “y donde levantó galpones, corrales y ranchos”.
Vimos, no início deste trabalho, que Melián, atendendo o pedido do intendente Manuel Ignácio Fernández, embarcou no início de 1780 (!), a bordo dos navios El Rosario y Dolores, 136 barris de carne através do porto de Montevideo. Acrescentamos, após o ano de 1780, um ponto de exclamação no intuito de chamarmos a atenção de que na referida data é o nome de Melián, e não o de Medina, que surge no cenário da salga de carnes.
Diante de tão demorada disputa, Medina resolveu dar outro rumo a seus passos. Renunciar à estância Don Carlos foi sua primeira resolução, alegando que por ela haviam duvidado de suas boas intenções, e isto lhe parecia o suficiente para desprezá-la.
Portanto, decidiu nosso personagem que: “Desde hoy agitaré con más empeño la compra de la estancia de los PP. Bethlemitas, sobre cuya elección me asisten tres razones a mi modo de entender muy esenciales, cada una en su especie: la primera, porque con el ganado que ella tiene y poco más que yo compre, podré salar en todo el inmediato invierno los ocho mil quintales de carne que debe componer cada remesa; la segunda porque se consigue sacar de manos muertas este terreno, en que adquiere el Estado una ventaja en el día bien demostrada, y la tercera porque ya no pienso en la estancia de Don Carlos de manera alguna”.
Embretado pelos reflexos da polêmica entre Sans e Loreto, a resolução tomada por Medina em outubro de 1786 foi ao mesmo tempo drástica e audaz, porém, dada a sua situação econômica, em que, apesar de possuir frota própria e capital imobilizado, estava arruinado, “falto de credito y de movimiento serio en sus ganâncias”[...].
Por isso, necessitava novamente ajuda em dinheiro. E é assim que, apesar de endividado, o castellano recebe, através da Junta da Real Fazenda de Buenos Aires, sob fiança, um empréstimo de 15 mil pesos por 2 anos, por conta de novos créditos que viesse a obter junto à Coroa.
O resto dos recursos necessários para alimentar “una boca que jamás había bastante para cerrarla”, como foi a fábrica em sua fase de instalação, partiu do desonesto comandante Francisco de Ortega – é o que nos informa o historiador Arturo Ariel.
Ortega já havia, anteriormente, na empresa pesqueira, dado um apoio direto ao homem de Sebico, bem como o haviam feito outros personagens da “rosca administrativo-oligárquica de lá región. Mas, dessa vez, ao socorrer os bolsos de um capitalista em apuros, se convertia em sócio do mesmo, com a condição de receber inicialmente dez por cento dos lucros e, posteriormente, cinquenta por cento destes, segundo palavras do próprio comandante ao final de sua carreira funcional e delituosa.
Dessa forma, Medina compra os direitos dos Padres Bethlemitas (pertencentes a uma ordem religiosa de origem guatemalteca e estabelecidos em Buenos Aires, na época) e uns documentos de medição a Valentín Güeli e seus irmãos em caráter de herdeiros de Félix Sánchez, cuja legitimidade nunca pôde revalidar.
A estância empregada para assentamento da fábrica se achava a uma légua da “Villa Nueva Nuestra Señora del Rosario, o San Antonio, o el Colla (nombre éste que lá zona, em sentido más amplio que el casco poblado, tomara de un indio de esa nación establecido allí em 1726)” e próxima ao Puerto del Sauce, no atual Departamento de Colonia. Amplo rincão limitado por el Rosario, el Sauce, el Plata y el corral del rey, havia sido baldio e realengo antes de ser outorgado ao Convento Bethlemítico, que o ocupava já em 1751.
Vejamos agora em detalhes a planta que despertou a admiración de esta Provincia por los edificios que había labrado.
A edificação, composta por numerosos ranchos, foi levantada com paredes de tijolos e barro em uns casos, e, em outros, empregaram o simples pau a pique. Seus tetos eram de trama de junco ou telhas e argamassa, para oferecer no conjunto um aspecto rude, típico das construções industriais da época. Reunia, em um verdadeiro complexo, espaços dedicados às diferentes atividades, próprias ou relacionadas com a salga e abrigou em seu interior ou à sua volta, em torno de duzentos operários. O setor principal esteve por suposto na fábrica de salga, que compreendia 5 galpões destinados às correspondentes etapas do processamento: el matadero, onde os desnucadores acuchillaban as reses sacrificadas cada dia; tinha 34 varas (+ ou – 28,5m de largura). Era aberto nos dois costados, igual a uma de suas frentes, mas dividido por uma parede de arbustos rebocada com barro. Dentro, 15 molinetes, com seus respectivos aparelhos, serviam para matar, desossar, suspender e despedaçar o gado.
O chamado laboratorio de salazones era, por sua vez, o centro motriz do estabelecimento. Até ali se transladavam, sobre carros e carrinhos de mão, os animais mortos, para degola, tirar o couro e cortar em largas tiras, que uma vez oreadas ingressavam nos depósitos de sal onde permaneciam os 40 ou 50 dias necessários para sua verdadeira maturidade. Tinha este ambiente 60 varas (+ ou – 50 m de largura): em seu centro se punham em linha reta 10 grandes tanques para a salmoura e oito mesas de pedra lavrada, tijolos e argamassa, que deixavam nos seus flancos espaços para a dispersão e troca do pessoal. A luz penetrava através de quatro janelas laterais e duas portas.
Outro galpão de 23 varas (+ ou – 19 m) abrigava a tonelaria, marcenaria e carpintaria e se achava logicamente em comunicação com o saladero. O segundo ambiente em superfície, de 47 varas (+ ou – 39 m de largura), servia de depósito à produção em duas divisões estabelecidas e a terceira servia de dormitório para os mestres toneleros.
Um quarto galpão – de iguais dimensões do que o maior – fechava com os anteriores o amplo pátio do estabelecimento, e não chegou a ser terminado durante o tempo de atividade da planta toda. Próximo a este conjunto estava outro grande ambiente fechado, 44 varas (+ ou – 37 m de largura), destinado, sua parte principal, para dormitório do pessoal e o resto para armazenar tasajo (charque).

Continua...

Referências

MONQUELAT, A. F. Don Francisco Medina, el tasajo y Pelotas. In: ______. Notas à margem da história da escravidão. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2009. p. 71-100.
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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 19 de setembro de 2010.

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