domingo, 24 de outubro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (8)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores


Concluindo, fazemos coro com a voz de Arturo Ariel Bentancur, autor da obra já citada e que tornou possível este trabalho, ao nos dizer sobre o saladero de Medina:
Quando começava a dar seus primeiros frutos, a morte prematura de seu criador e o quase paralelo descobrimento de uma série de delitos de que a empresa era filha, frearam uma carreira destinada ao maior brilhantismo. Porém, isso não impediu que fecundasse a semente do progresso inevitável da atividade, que ali começava a germinar...
Considerando o até aqui exposto, o que ainda poderíamos ter dito e não o dissemos sobre o castellano Medina, resta-nos uma indagação: pode-se de alguma forma traçar algum paralelo – mesmo que grosseiro como todos os comparativos costumam ser – entre o espanhol Don Francisco Medina Portillo e o português José Pinto Martins? A resposta nos parece óbvia: não. Tampouco o cronológico, o tal que estabelece o ano de 1780 – que ainda hoje me pergunto de onde saiu coincidente e redonda data – tanto aqui quanto lá, da instalação do primeiro saladero e da primeira charqueada. Isto porque acreditamos ter ficado documentalmente claro, o homem de Sebico instalou o seu projeto maior, um verdadeiro e visionário complexo industrial, entre os anos de 1787-88 e não 1780 (MONQUELAT, 2009, p. 71-97).
Voltando ao Continente de São Pedro, podemos dizer que naquela mesma época, época da correspondência de Mateus Vaz Curvelo e seus sócios, o número de vassalos de Sua Majestade, segundo o Mapa geral de toda a população pertencente ao Governo do Continente do Rio Grande formado pelos resumos, que deram os Vigários de cada uma das Freguesias do mesmo Governo, datado e assinado por Rafael Pinto Bandeira na vila do Rio Grande de São Pedro aos 26 de fevereiro de 1791, era de 25.032.
Destes, 7.341 eram do sexo masculino e 6.916 do feminino. A população de forros, índios e escravos somava o total de 10.775, distribuídos da seguinte forma: Forros pardos 116, pardas 138, pretos 169 e pretas 199; índios 381 e índias 416; escravos pardos machos 385, pardas fêmeas 327; pretos machos 4.797, pretas fêmeas 2.587. Ao lado, no quadro estatístico dos escravos, trazia a seguinte informação: Nascidos: 1.260; sem indicação de sexo ou condição destes.
Se considerarmos o total de 25.032 habitantes, veremos que o número de escravos pardos e negros de ambos os sexos (8.100) representava trinta e dois, trinta e seis por cento (32,36%) da população.
Informava, ainda, Pinto Bandeira que nas 87 embarcações saídas do porto de Rio Grande, durante o ano de 1790, foram carregadas 209.418 arrobas de Charque ou carne seca, ao preço de 320 réis por arroba; 8 pipas de Carne de Salmoura a 6.000 réis por pipa, dentre diversos outros produtos.
Em Lisboa, por meados de julho de 1791, Francisco Gomes Valente, comerciante de Coimbra, pleiteava, junto à Rainha, permissão para trazer um Patacho carregado de sal e outros víveres ao Continente do Rio Grande de São Pedro.
Rafael Pinto Bandeira, dia 27 de fevereiro de ano de 1792, informava a Martinho de Melo e Castro, através do Extrato da exportação dos efeitos, que 106 embarcações haviam carregado na barra do Rio Grande de São Pedro 255.926 arrobas de charque ao preço de 400 réis a arroba; dentre outros produtos arrolados, tais como trigo, farinha de trigo, sebo, couros em cabelo, queijos e manteiga se encontravam 211 arrobas de erva mate ao preço de 1.000 réis por arroba.
Para melhor compreensão das enormes dificuldades porque passava a região neste período, nada mais esclarecedor do que a reprodução integral do ofício do comandante do Rio Grande de São Pedro, Rafael Pinto Bandeira, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro: “Ilustríssimo e Exmo. Sr./ Meu Senhor, ainda que presentemente se ache recolhido à sua residência o Marechal de Campo, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara; contudo, como nos anos de 1790 e 1791, tenho posto na presença de V. Exª. a relação das exportações dos principais efeitos [produtos] produzidos neste Continente, pareceu-me justo acumular, a elas, a exportação do ano próximo passado de 1792 para que V. Exª. veja o sucessivo progresso que vai havendo de um ano para outro, e o que poderá haver daqui para frente, havendo quem olhe para este fértil e utilíssimo Continente, e quem lhe promova providências. Eu fui o primeiro que mostrei a V. Exª. o rendimento do Real Quinto dos Couros deste Continente, e pelas notícias que aqui correm, se sabe o aumento do valor pelo qual foi arrematado o dito quinto, nessa Corte. Esta fronteira, presentemente, se conserva no maior sossego; mas, assim mesmo os espanhóis continuam a aproximar-se com Guardas [postos]. O meu, dito Governador, tem feito conservar o meu plano de vigilância onde na Guarda de São João do Erval, há três Companhias de Cavalaria que constituem a legião do meu comando.
Exmo. Sr., agora tivemos a felicidade de receber três meses de soldo, depois de passados mais de quatorze meses sem este; além dos anos que se vão atrasando, pois há Oficiais a quem S. Majestade deve de soldos, doze, quatorze e quinze mil cruzados. Ora, considere V. Exª. como estes oficiais e suas famílias terão passado, e ainda que necessidades estão sofrendo, fazendo o atual serviço, o serviço de Campanha. Pelo que, Exmo. Sr., queira, por quem é, lembrar e compadecer-se deles. E queira também, V. Exª., perdoar estas minhas insistentes súplicas, que me obrigam a pôr na benigna presença de V. Exª. as necessidades que vejo sofrer esta pobre e sofredora tropa. [...]. Rio Grande, 20 de fevereiro de 1793”.
A relação mencionada por Pinto Bandeira, dos efeitos que se exportaram em 112 embarcações que saíram do porto de Rio Grande no ano de 1792, trazia 296.571 arrobas de Carne Seca, sem indicação do preço destas. Dentre os gêneros que entraram no mesmo porto, estavam 316 escravos, 35.040 alqueires de sal e outros.
Quanto ao contrato do Real quinto dos Couros, lembrado por Pinto Bandeira no ofício enviado a Melo e Castro, bem como os do Gado em pé, do fornecimento da farinha de guerra e carne fresca à tropa do mesmo Continente e o dos Dízimos Reais, foram todos arrematados por José Rodrigues Pereira de Almeida, como sócio e procurador de Antônio Ribeiro de Avelar e Antônio dos Santos.
A validade destes Contratos era de 1º de janeiro de 1794 a 31 de dezembro de 1796. No entanto, as intenções de José Rodrigues Pereira de Almeida e seus sócios não implicavam somente em explorar os direitos que estes lhes davam; havia também, por parte dos arrematantes, o propósito de instalarem no Continente do Rio Grande um grandioso estabelecimento – o que veremos mais adiante.

Continua...

Referências

MONQUELAT, A. F. Don Francisco Medina, el tasajo y Pelotas. In: ______. Notas à margem da história da escravidão. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2009. p. 71-100.
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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 03 de outubro de 2010.

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