domingo, 24 de outubro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (5)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla


A indústria de carnes salgadas entre os súditos da coroa espanhola

Dissemos, também, que “A técnica desenvolvida pelos irlandeses foi motivo de admiração e inveja de muitos que se aventuraram nesta atividade saladeiril”.
Acrescentamos a seguir: “Entre os espanhóis saladeiristas, consta-nos ter sido Don Francisco de Medina o primeiro a conseguir em seu saladero, através da instalação de um laboratório montado no estabelecimento, dirigido por técnicos irlandeses, esta façanha.
Tal fato, segundo palavras do Vice-rei Nicolás de Arredondo, ao falar sobre tal, é que Medina, no ano de 1787, “havia descoberto o segredo e as carnes rioplatenses venceram o mito de suas condições inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência – acrescentou o monarca em relação à forma vencedora – que em sublimar la salmuera del barril con una corta dosis de sal nitro” (MONQUELAT, 2009, p. 95).
E já que andamos por essas bandas, vamos aproveitar a estadia e dar uma espiada para vermos o que os súditos espanhóis andavam aprontando com suas carnes salgadas; pois, afinal de contas, também dizem que o pioneiro dentre eles, Don Francisco de Medina, por coincidência, iniciou suas atividades saladeris no mesmo ano de nosso Pinto, o ano de 1780.
Vamos averiguar se eles sabem, e confirmam isto:
Apesar de algumas iniciativas e trâmites para estabelecer a indústria saladeril no Rio da Prata desde o ano de 1771 até 1777, a história do charque na Banda Oriental só pode ser considerada a partir da instalação _ no lugar denominado el Colla _ de uma planta capaz de despertar a admiración de esta Provincia por los edificios que había labrado, segundo palavras do vice-rei Melo de Portugal em 1796.
De qualquer forma, os nomes de Manuel Melián, Francisco Albín e Miguel Ryan, não podem ser olvidados na lista dos primeiros entre os súditos da coroa espanhola a se dedicarem a tal indústria, tendo os mesmos, inclusive, feito vários e consideráveis envios do produto à Espanha e Cuba.
Através do próprio Melián nos é possível saber que no início de 1780, cumprindo um pedido do Intendente, D. Manuel Ignacio Fernández, embarcou no porto de Montevideo, a bordo dos navios El Rosario e Dolores, 136 barris de carne e que posteriormente provisionou muitos outros barcos. Com respeito a Francisco Albín, sabe-se que o mesmo possuía uma manufactura de carnes saladas em sua estância localizada próxima do porto de Las Vacas, na Banda Oriental. Quanto a Miguel Ryan, era este proprietário de um saladero que existia na jurisdição de Montevideo.
No entanto, a ação conjunta ou isolada dos nominados não foi sob nenhum aspecto capaz de se sobrepor ao nome de Francisco Medina, o saladerista do Colla.
Don Medina ou Francisco Medina Portillo, nascido na Vila de Sebico (Castilla la Vieja, Obispado de Palencia), chegou bastante jovem ao Rio da Prata, por volta dos anos 70 (1770).
Arturo Ariel Bentancur, autor da obra Francisco Medina, la empresa de la discordia, trabalho este que somado a outros que já fez publicar traçam com rigor histórico solidamente documentado um estudo sócio-econômico do período colonial na Banda Oriental, nos diz que Medina teve uma vida relativamente breve, morreu antes dos 50 anos e que a mesma foi “un vértigo siempre creciente, desde el mismo momento que puso un pie en América”.
Viveu depressa, correndo atrás de valores profundamente relacionados com o objetivo maior de sua aventura transoceânica: fazer fortuna e dirigir grandes projetos. Sonhos e desafios que Medina consegue em um curto espaço de tempo transformar em palpáveis realidades fazendo desta forma com que nosso personagem incorpore os papéis de comerciante, abastecedor do Estado em diversos ramos, proprietário de barcos, estancieiro por decorrência, para então, no final de sua vida, interpretar o seu maior papel: “maximo gestor de la experiencia pionera en salazón de carnes locales”, palavras do historiador Bentancur.
A iniciativa de Medina, elaboração de carnes salgadas em larga escala, simbolizou a lo largo, a grande contribuição rioplatense à Coroa Espanhola, que, até então, comprava tal produto de outros países da Europa, fundamentalmente, para alimento dos efetivos da Real Armada e dos escravos caribenhos.
Quando, em 30 de junho de 1784, ao apresentar sua proposta de salga de carnes, Medina não somente atendia os desejos da Coroa Espanhola como, também, seguia o conselho de alguns de seus representantes platenses dispostos a lhe dar apoio. O que o homem de Sebico não imaginou é que estivesse entrando em um desconhecido labirinto, cujo final seria, postumamente, envolvê-lo em um dos mais ruidosos escândalos e delitos da época.
Mas não precipitemos os fatos, vejamos em que consistia a proposta de Medina: começava lamentando o conhecido desperdício das carnes rioplatenses e criticava o inadmissível oferecimento dos hacendados dizendo que: “Está claro que solo tiran a fomentarse cada individuo en particular [...]”.
Aludia, também, às experiências registradas na atividade e entre elas incluiu as próprias: “Al que expone se le han desgraciado, no una vez sola, algunos barriles que ha remitido, pero está cierto en que este defecto no pende, como generalmente se publica, de las carnes ni de los sales, sino que es de que no se han guardado para salarlas, las reglas que se observan em el Norte. Nada hay más facil que el dar una cosa por imposible completava, junto com a defesa do emprego ordenado de métodos, combinações e economias.
Nessa breve introdução, Medina mesclava sua firme esperança com um confiável arrazoado embasado não somente na sua experiência pessoal, bem como na leitura de alguns tratados teóricos nacionais e estrangeiros.
Na continuidade da proposta, enumerava as restritas condições debaixo das quais estava disposto a empreender o negócio:
Em primeiro lugar, e considerando que não possuía campo próprio, pediu que lhe vendessem, com todos os pertences, a estância real de Don Carlos, nas cercanias da Ensenada de Castillos, para instalar ali seu estabelecimento de salgar. Pois, “Hace tanto tiempo no ha rendido a S. M. más que gasto” – expunha junto com a afirmação de que “para nada la necesita”. Durante o tempo que comprometia um pagamento em moeda sonante, se obrigava a introduzir na Espanha, durante cada um dos quatro anos seguintes à venda do imóvel, 8.000 quintales de carne salada. E que: Llegando allá buenos y bien acondicionados, los ha de entregar al Banco de San Carlos como asentistas generales, al mismo precio que el referido Banco tenga contratado pagar la del Norte que se haya comprado. Tal é a redação desta segunda cláusula que o historiador Bentancur entende seja por supuesto una exigencia; no que concordamos, além do que entendemos que a mesma já espelhasse uma certeza quanto à qualidade que Medina esperava obter no preparo do produto.
Na cláusula sexta, em um gesto de generosidad y amplitud, se obrigava a instruir quantos particulares se manifestassem interessados na exploração do novel ramo produtivo, a fim de favorecer ao máximo seu desenvolvimento. Para tanto, se mostrava disposto a abrir as portas de seus “saladeros y demás laboratorios, para que se instruyan y aprendan cada uno por sí lo que es necesario saber”.

Continua...

Referências

MONQUELAT, A. F. Don Francisco Medina, el tasajo y Pelotas. In: ______. Notas à margem da história da escravidão. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2009. p. 71-100.
____________________________________________
Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 12 de setembro de 2010.

Nenhum comentário: