segunda-feira, 23 de agosto de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (2)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores no primeiro período (1780-1800)

Embora a indústria do charque no Rio Grande do Sul tenha iniciado nas primeiras décadas do Século XVIII, fato já tratado por outros pesquisadores e historiadores; e recentemente por nós, quando da publicação na Imprensa do artigo “José Pinto Martins, o Charque e Pelotas”, é apenas a partir do ano de 1780, que dizem ser o ano que Pinto Martins deu princípio às suas atividades saladeiris em Pelotas, que a indústria desse produto começa a dar sinais de sua importância econômica para o Continente de São Pedro do Sul.
Entendemos, no entanto, que somente por volta do final do Século XVIII é que o charque passa a despertar o interesse da Metrópole.
A indústria do charque deve grande parte do seu desenvolvimento e estímulo, sem dúvida alguma, ao governador rio-grandense Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, que despendeu muitos esforços em prol da produção e comércio de carnes salgadas, bem antes da recomendação feita pelo encarregado do comando da Esquadra da América, Donald Campbell, à coroa portuguesa.
A recomendação do oficial inglês, Campbell, se deu devido ao fato de as medidas adotadas pelo governo português, para o abastecimento de sua Armada, não serem satisfatórias; pois os processos usados nas salgas das carnes, ainda primitivos, não davam a essas a durabilidade necessária às longas viagens ou estadia prolongada dos navios da Armada em alto mar (XAVIER, 1974, p. 9).
E isto nos leva a supor que tal recomendação seja o motivo pelo qual o Vice-rei, conde de Rezende, tenha oficiado ao governador rio-grandense, em 20 de novembro de 1800, nos seguintes termos: “Ainda estando bem persuadido dos esforços que V. Exª. tem feito e continua a fazer para pôr em uma sólida e permanente consistência o estabelecimento das carnes salgadas. Assim, em consequência das ordens da Corte dirigidas a V. Exª. como muito mais pelo interesse que considero ter tomado no aumento do comércio e felicidade desses povos, contudo, tomo a deliberação de falar novamente a V. Exª. sobre este artigo, pelo novo motivo que ocorre”.

E pouco mais adiante, neste mesmo Ofício, acrescenta o Vice-rei: “É certo que a primeira amostra da tentativa que se fez das carnes salgadas não correspondeu aos bons desejos que tanto eu como V. Exª. teríamos de ver o feliz êxito de tão eficazes diligências, porque toda a carne foi lançada ao mar por causa de sua corrupção, mas além do que com o tempo e com trabalho que promete para o futuro grandes lucros é que se [aperfeiçoe] semelhantes fábricas. Penso que a assistência desses homens que vieram do reino para instruirem sobre o modo de fazer as salgas, ter-se-á adquirido outro melhor conhecimento e mais seguro método; e, por [consequência], pôr em giro o comércio das carnes, ainda que por ora, se aplique toda a que se puder beneficiar para o consumo da Esquadra, enquanto aquele não tem maior extensão”.
Fazemos aqui uma breve interrupção no ofício do conde de Rezende ao governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, para tecermos algumas considerações quanto à notícia dada pelo Vice-rei, de que “toda a carne foi lançada ao mar por causa da corrupção” (grifos nossos).
Considerando que aquele fato ocorreu quase duas décadas depois de instalada a charqueada de “um homem que conhecia o fabrico da carne do sertão [...] por um processo garantidor da sua longa conservação [...]” (LOPES NETO, 1994, p. 17, grifos do autor), bem como já instaladas estavam outras fábricas de charquear no Continente, vê-se que as carnes salgadas, até então, não tinham a qualidade necessária para suprir as necessidades da armada portuguesa.
Ora, para nós, isto demonstra que as charqueadas em funcionamento no Continente, até àquela época, não haviam atingido um apurado nível técnico no fabrico das carnes. E esta é uma das principais razões para que tenhamos estabelecido aquele período de 1780 a 1800, como o das charqueadas operacionalmente primitivas.
Uma outra, e séria razão da má qualidade do charque foi a dificuldade enfrentada pelos charqueadores na obtenção de sal: produto de suma importância para o funcionamento das charqueadas.
Quando da publicação, em 2009, de nosso trabalho Sal, Escravidão e Charque (MONQUELAT, 2009, p. 11), dentre as perguntas que nos fizemos quanto ao sal, uma delas era a de “com que frenquência e de que modo chegava [o sal] às charqueadas?”.
E logo a seguir acrescentamos: “Uma das primeiras manifestações escritas talvez seja a Relação dos gêneros importados e exportados no Rio Grande de São Pedro no ano de 1787; onde consta que, no decurso deste ano, entraram sessenta e nove embarcações vindas do Rio de Janeiro, Sta. Catarina, Pernagoá e Cananéia, as quais conduziram o seguinte: ‘[...] 152 escravos [...] 15.610 Alqueires de Sal, [...]’. Consta, ainda, na mesma Relação, que saíram do Rio Grande de S. Pedro para o Rio de Janeiro no dito ano de 1787 sessenta e cinco embarcações as quais exportaram o seguinte: ‘[...] 117.221 arrobas de Carne em Xarque; [...] 4 barris de carne em Moura¹’.” (MONQUELAT, 2009, p. 13).
Para que tenhamos uma ideia do alto custo do sal, disponibilizamos aqui uma simples comparação: 1 alqueire de sal, equivalia a 13,8Kg. Naquela época, o alqueire chegou a ser vendido no Continente pelo preço de 1.100 réis. Dividido o preço do alqueire pela quantidade de sal, chegaríamos ao valor de quase 80 réis o quilo.
Vejamos o preço da arroba de charque no mesmo período: 320 réis. Uma arroba é igual a 14,7Kg. Divididos os 320 réis por 14,7Kg., teremos então o preço do quilo do charque, que é igual a mais ou menos 21,77 réis.
Logo podemos dizer que, para comprar um quilo de sal, era necessário vender quatro quilos de charque. Bem, a partir desta constatação e da dificuldade de comprarem essa preciosa mercadoria, que era o sal, podemos deduzir as razões da má qualidade e da pequena produção de charque no Continente de São Pedro do Sul.
Antes de darmos continuidade ao ofício do Vice-rei ao governador do Rio Grande, queremos arrolar, aqui, pelo menos dez charqueadores estabelecidos em Pelotas neste primeiro período, quais sejam: José Pinto Martins, Teodósio Pereira Jacome, João Cardoso da Silva, Miguel da Cunha Pereira, José Tomaz da Silva, Antônio Soares Paiva, José Vieira da Cunha, José Rodrigues Barcelos, Baltazar Gomes Viana e outros mais que apontaremos no decorrer do trabalho.

Continua...

Referências

MONQUELAT, A. F. Sal, escravidão e charque – parte 3. Jornal Diário da Manhã, Pelotas, 15 mar. 2009, p. 13.
MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. José Pinto Martins, o Charque e Pelotas. Jornal Diário da Manhã, Pelotas, 4 e 11 abr. 2010(a).
LOPES NETO, João Simões. Apontamentos referentes à história de Pelotas e de outros dois municípios da Zona Sul: São Lourenço e Canguçu. Pelotas: Armazém Literário, 1994.
XAVIER, Paulo. Salgas de carne. Suplemento Rural Correio do Povo, Porto Alegre, 15 mar. 1974, p. 9.
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¹ Explicamos: a carne de moura, salmoura, ou moira; s. f. (de sal, e do grego mirya, licor que se forma de sal desfeito no humor que sai do peixe, ou carne que se põe de sal para se conservar incorrupto.
Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 22 de agosto de 2010.

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