sábado, 14 de agosto de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (1)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla


Pelotas e suas fábricas de charquear

Antes de darmos início aos “Apontamentos para uma história do charque no Continente de São Pedro”, queremos esclarecer uma questão: a um estabelecimento saladeiril se pode chamar de indústria?
Ainda que pareça estranho a alguns e não concordem outros, entendemos que sim; pois industriar alguma coisa pode ser visto como a conjugação do trabalho e do capital para transformar a matéria-prima em bens de produção e consumo. Portanto, podemos entender uma charqueada como uma “fábrica de carnes”; aliás, expressão comumente empregada em documentos dos Séculos XVIII e XIX, quando a estas se referem.
Uma fábrica, por sua vez, é a estrutura, construção, organização e fabrico de qualquer coisa. Ou, também, manufatura ou oficina onde se fabrica alguma coisa ou se prepara algum produto.
E o que era uma fábrica de charquear, ou uma charqueada?
Esta pergunta pode ser respondida através do inquérito feito pela Junta da Fazenda do Rio Grande no ano de 1805, para demonstrar que os negociantes sulistas, embora tivessem feito lance maior do que o dos negociantes do Rio de Janeiro, na arrematação do contrato dos dízimos para o triênio de 1806-1808, não teriam esses “condições de honrar o contrato e que os bens que ofereciam em garantia não eram suficientes” (OSÓRIO, 2007, p. 322).
Os negociantes gaúchos, segundo Helen Osório (2007), eram José Vieira da Cunha, capitão José Rodrigues Barcelos, Miguel da Cunha Pereira e Companhia (formada por mais dois sócios, que eram o capitão José Tomaz da Silva e Antônio Soares Paiva). É ainda a autora quem nos diz que entre os ouvidos pela Junta estavam estancieiros e abastados negociantes, que perguntados “da condição econômica de cada um dos proponentes e sobre o quanto valiam as charqueadas, esses os bens que os negociantes haviam oferecido em garantia. Todos os depoentes, ouvidos no final de 1805, fizeram declarações semelhantes à seguinte: ‘[...] as fábricas de charquear carnes neste país consistem em uma casa feita de paus a piques coberta de palha com as mesas e cochos para salgar as carnes, e no campo várias estacas com paus atravessados em que nas mesmas se secam, de sorte que uma das melhores não pode custar mais de 500 até 600$000 e fora daquele ministério para o qual foram destinadas não têm valor algum’ [grifos da autora]” (OSÓRIO, 2007, p. 322-323).
Os cinco sócios proponentes foram apontados como charqueadores; dos quais, três não possuíam terras próprias. Acreditamos tratar-se de Miguel da Cunha Pereira, o capitão José Tomaz da Silva e Antônio Soares Paiva, charqueadores em Pelotas e estabelecidos em terras de Mariana Eufrásia da Silveira (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010c).
Sobre Antônio Soares da Silva foi dito ser “negociante bem estabelecido, porém no tempo da guerra perdeu 3 embarcações e as suas cargas que iam para a cidade da Bahia, donde veio totalmente falido e assim se tem conservado, sendo pública voz a fama que deve mais do que tem” (OSÓRIO, 2007, p. 323).
Quanto a José Vieira da Cunha, diz Osório (2007) ser o único realmente bem instalado e dele já nos ocupamos quando da publicação de nosso trabalho sobre a Sesmaria do Santa Bárbara (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010a).
Esclarecidas as razões e dirimida a questão, sugerimos outra: de que maneira podemos dividir, como forma de melhor entender, a história do charque, ou da indústria saladeiril em Pelotas?
Acreditando que possa ser vista e admitida em três períodos, nos propomos observá-los partindo do pressuposto de que José Pinto Martins aqui estivesse desde o ano de 1780, o que daria início ao primeiro período, que se estenderia até o final do Século XVIII.
O segundo, do início do Século XIX até o final da revolta civil (1845), denominada de “Revolução Farroupilha”.
E, por último, o período que vai do final da revolta civil até o surgimento dos frigoríficos (1917). Desse último período, pelo menos neste trabalho, não nos ocuparemos.
Embora não haja prova documental alguma sobre a presença de José Pinto Martins em Pelotas, desde o ano de 1780, vamos aceitar este fato como possível, ainda que Alvarino da Fontoura Marques, em sua obra “Episódios do ciclo do charque” nos diga que “Em 1779, José Pinto Martins estabeleceu-se, com sua indústria de charque, às margens do arroio Pelotas” (MARQUES, 1987, p. 85).
Não satisfeito em ter estabelecido uma nova data de instalação da primitiva charqueada de Pinto Martins, acrescenta Marques: “Pinto Martins encontrou grande apoio dos habitantes, porque lhes proporcionou mercado para seus gados, dava empregos, abrigava grande número de famílias sem terra, desenvolvia a navegação fluvial e estimulava o comércio de toda a região” (1987, p. 85).
Considerando que Marques, a exemplo de outros pesquisadores, não faz a menor referência de onde extraiu tais afirmações, podemos reputá-las como fruto da imaginação do também autor de outro livro, “Evolução das charqueadas rio-grandenses”.
Para que fique mais evidente nossa afirmação de que Marques deu asas à imaginação, ao se referir a Pinto Martins e sua primitiva charqueada, fazemos aqui duas perguntas: pode-se conceber um estabelecimento, segundo ele fundado em 1779, portanto, três anos depois da retomada da região, em condições de “dar empregos” e abrigar “grande número de famílias sem terra”?
Não. E é tão absurda esta hipótese, que é o próprio Marques (1987, p. 85) quem a contradiz no parágrafo anterior ao das afirmações, quando escreve que “Os campos da região ainda eram considerados de posse indecisa entre as duas coroas”, Portugal e Espanha.
Ora, dar empregos em uma época de mão-de-obra quase que exclusivamente escrava e abrigar nesse mesmo estabelecimento “grande número de famílias sem terra”, nos leva a supor uma fábrica de carnes de médio ou até mesmo de grande porte, o que naquela época e circunstâncias é algo totalmente impossível, para não dizer um contra-senso; haja vista a precariedade e o pouco valor de uma charqueada, como se pode ver das declarações dos estancieiros e negociantes quando inquiridos pela Junta sobre os bens dos cinco proponentes sul-rio-grandenses, que pretendiam arrematar o contrato dos dízimos, para o triênio de 1806-1808. Imaginemos então o que era uma charqueada nos anos 1780 e nos anos seguintes.

Continua...

Referências

MARQUES, A. da F. Evolução das charqueadas rio-grandenses. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1990.
______. Episódios do ciclo do charque. Porto Alegre: Edigal, 1987.
MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. O povoamento de Pelotas – partes 11, 12 e 13. Jornal Diário da Manhã, Pelotas, 20 e 27 de jun e 4 de jul. 2010(a).
______. José Pinto Martins, o Charque e Pelotas. Jornal Diário da Manhã, Pelotas, 4 e 11 abr. 2010(b).
______. O povoamento de Pelotas. vol. I, 2010(c). (No prelo).
OSÓRIO, H. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2007.

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* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 15 de agosto de 2010.
Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.

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