domingo, 29 de agosto de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (3)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores no primeiro período (1780-1800)

Dando continuidade ao ofício do Conde de Rezende, diz-nos este: “será bem digno de lástima que por falta de indústria e atividade, nos vejamos na dependência de nos utilizarmos das carnes de Montevidéu, comprando-as por um preço que, ainda sujeitos a muitos riscos e descontos, não deixe de fazer conta aos interessados; sendo, além disso, evidente que esse socorro é precário e só permitido naquelas circunstâncias que as leis toleram, a tempo que vindo desse Continente seria preferível a todos os respeitos que reservam à ponderação de V. Exª.
Recopilando, finalmente, tudo quanto por vezes e agora tenho dito, certifico a V. Exª., que estou inteiramente persuadido das incalculáveis vantagens desse comércio, ou seja, a benefício dos particulares ou da Fazenda Real e que V. Exª., tendo além da mesma persuasão e conhecimento dos meios que de mais perto pode aplicar para estabelecer uma Fábrica tão interessante, dará um pronto cumprimento às ordens de S. A. Real e não deixará de assentir às minhas recomendações sobre o mesmo objeto pois são conformes às que semelhantes recebo e não poderão diminuir o merecimento que tão justamente adquira V. Exª. em ter promovido solidamente este desejoso comércio”.
Este final do Ofício reforça nossa tese de que até aquele momento, 20 de novembro de 1800, o charque produzido no Continente não havia atingido o estado de uma boa qualidade, ou pelo menos de um nível que atendesse à expectativa e interesses da Coroa, pois se lia, ainda que “digno de lastima, [...] por falta de indústria e atividade nos vejamos na dependência de nos utilizarmos das carnes de Montevidéu [...]”.
Um outro aspecto deste Ofício é a passagem em que o Vice-rei diz estar inteiramente convencido das “incalculáveis vantagens desse comércio [referindo-se às carnes salgadas], ou seja, a benefício dos particulares ou da Fazenda Real”, estando também persuadido de que o Governador empregaria os mesmos esforços até então aplicados no sentido de o Rio Grande melhorar a qualidade de suas carnes salgadas, “para estabelecer uma Fábrica tão interessante”.
Entendia o Vice-rei que o desempenho do Governador, nesses objetivos, não somente atenderia às ordens de Sua Alteza Real, como também lhe traria o mérito de ter “promovido solidamente este desejoso comércio”.
Antes de nos reportarmos à “Fábrica tão interessante” mencionada no Ofício, recuaremos ao ano de 1789, onde encontraremos os comerciantes Mateus Vaz Curvelo, Bento José Marques e Simão Lopes & Irmão propondo à rainha (D. Maria I), inflamados pelo desejo de serem uteis à sua pátria, e adiantarem os seus interesses particulares por meios lícitos e honestos, lembrando que sendo o Rio Grande de São Pedro, “por sua feliz situação e altura do pólo em que se encontra, um país fecundo e mais fértil que nenhum outro dos domínios de V. Majestade, e muito próprio para semear o linho-cânhamo, como a experiência já o havia demonstrado e ali se poderia melhorar o trigo e fazer carnes de moura para o uso da Marinha, aos moldes das feitas na Irlanda, e buscarem o sebo apurado e necessário aos usos domésticos e por isso e por outras mais razões para ali queriam mandar seu navios com fazendas [tecidos] européias” ao mesmo tempo que pediam que lhes fosse dado o direito, por Contrato, de levarem o sal necessário para a salga de carnes, dos couros e gasto doméstico, visto que o Contrato de Sal do Brasil não tem privilégios que se estendam além de Santos, e cinco léguas entorno, o que, por consequência natural e legítima, é do domínio e poder de V. Majestade, ou deixar franco (aberto, liberado) este ramo do comércio ou criar no futuro um novo Contrato.
A cautela dos comerciantes proponentes de um Contrato do Sal, ou autorização da Rainha para levarem sal ao Continente e Santa Catarina, certamente era consequência do oneroso e negativo resultado que poucos meses antes tivera Manuel Pinto da Silva; pois em sua segunda viagem, cujo objetivo era levar sal e carregar carne de moura, caiu, por desvio de rota, em mãos do Contratador do Sal do Brasil Joaquim Pedro Quintela & Cia., e teve de assinar o Termo de Tomadia, onde declarou que: “[...] tendo expedido de Lisboa o dito Bergantim [antiga embarcação à vela e remo], nele fiz carregar 95 moios [um moio equivalia a 60 alqueires; e um alqueire era igual a 13,8kg] de sal, com o destino de o levar para o Rio Grande de São Pedro, para vendê-lo por minha conta [...]”.
Joaquim Pedro Quintela e Cia. tinham o direito do Sal do Brasil de 1º de janeiro de 1788 a 1º de abril de 1801 e o Contrato lhes dava o poder de apresar qualquer embarcação que transportasse sal, dentre outros direitos.
Não obstante o oneroso incidente, Manoel Pinto da Silva não desistiu do intento. E, assim sendo, vamos encontrá-lo aos 10 dias do mês de dezembro de 1790 requerendo à Rainha, com base no argumento de que o Rio Grande e Santa Catarina eram muito próprios para deles se exportar para Lisboa muitos dos frutos produzidos naqueles lugares, principalmente trigo, farinha, queijos, manteiga e carnes de salmoura, com tamanha abundância, que poderiam abastecer não só a Marinha Real como também a Praça de Lisboa. Disse ainda que, tendo chegado daqueles lugares um Bergantim seu, trazendo por amostra parte dos ditos frutos em perfeito estado, e sabendo a necessidade que os habitantes, para maior comércio e manufatura dos referidos gêneros, tinham do sal, se ofereceu para supri-los, pois não estavam aqueles dois Portos compreendidos no “Contrato do Sal do Brasil” e, assim sendo, suplicou aquele Contrato pelo prazo de 10 anos, para o qual incluiu em seu requerimento as condições.
Na primeira delas se ofereceu a pagar livres para a Fazenda Real trinta contos de reis, em 10 parcelas de 3 contos cada uma, vencendo-se a primeira em 1º de junho de 1792, ou seja, um ano após o início do Contrato; e a última em início de junho de 1801, quando findava o Contrato. Na terceira se obrigava a remeter, por sua conta e risco, todo o sal necessário para abastecer “[...] ditos dois países e seus distritos, o qual venderá na Ilha de Santa Catarina a novecentos e sessenta reis cada alqueire; e no Rio Grande de São Pedro a mil e cem reis, [...]”. A 12ª condição encerrava a proposta, que assinou e datou em Lisboa.
Vimos que a pretensão, tanto de Mateus Vaz Curvelo e seus sócios, quanto a de Manuel Pinto da Silva, ao trazerem sal para o Continente, era estimular o fabrico das “carnes de moura aos moldes das feitas na Irlanda”, para o uso da Marinha, bem como a praça de Lisboa.
A vontade dos súditos portugueses, em aliviar os cofres da Coroa, provinha desde há muito, pois já na segunda década de instalação da Colônia do Sacramento, ou mais precisamente no ano de mil seiscentos e noventa e oito, no governo de Dom Francisco Naper, foi feita a primeira experiência do fabrico de “carnes de vaca em pipas”.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 29 de agosto de 2010.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (2)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores no primeiro período (1780-1800)

Embora a indústria do charque no Rio Grande do Sul tenha iniciado nas primeiras décadas do Século XVIII, fato já tratado por outros pesquisadores e historiadores; e recentemente por nós, quando da publicação na Imprensa do artigo “José Pinto Martins, o Charque e Pelotas”, é apenas a partir do ano de 1780, que dizem ser o ano que Pinto Martins deu princípio às suas atividades saladeiris em Pelotas, que a indústria desse produto começa a dar sinais de sua importância econômica para o Continente de São Pedro do Sul.
Entendemos, no entanto, que somente por volta do final do Século XVIII é que o charque passa a despertar o interesse da Metrópole.
A indústria do charque deve grande parte do seu desenvolvimento e estímulo, sem dúvida alguma, ao governador rio-grandense Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, que despendeu muitos esforços em prol da produção e comércio de carnes salgadas, bem antes da recomendação feita pelo encarregado do comando da Esquadra da América, Donald Campbell, à coroa portuguesa.
A recomendação do oficial inglês, Campbell, se deu devido ao fato de as medidas adotadas pelo governo português, para o abastecimento de sua Armada, não serem satisfatórias; pois os processos usados nas salgas das carnes, ainda primitivos, não davam a essas a durabilidade necessária às longas viagens ou estadia prolongada dos navios da Armada em alto mar (XAVIER, 1974, p. 9).
E isto nos leva a supor que tal recomendação seja o motivo pelo qual o Vice-rei, conde de Rezende, tenha oficiado ao governador rio-grandense, em 20 de novembro de 1800, nos seguintes termos: “Ainda estando bem persuadido dos esforços que V. Exª. tem feito e continua a fazer para pôr em uma sólida e permanente consistência o estabelecimento das carnes salgadas. Assim, em consequência das ordens da Corte dirigidas a V. Exª. como muito mais pelo interesse que considero ter tomado no aumento do comércio e felicidade desses povos, contudo, tomo a deliberação de falar novamente a V. Exª. sobre este artigo, pelo novo motivo que ocorre”.

E pouco mais adiante, neste mesmo Ofício, acrescenta o Vice-rei: “É certo que a primeira amostra da tentativa que se fez das carnes salgadas não correspondeu aos bons desejos que tanto eu como V. Exª. teríamos de ver o feliz êxito de tão eficazes diligências, porque toda a carne foi lançada ao mar por causa de sua corrupção, mas além do que com o tempo e com trabalho que promete para o futuro grandes lucros é que se [aperfeiçoe] semelhantes fábricas. Penso que a assistência desses homens que vieram do reino para instruirem sobre o modo de fazer as salgas, ter-se-á adquirido outro melhor conhecimento e mais seguro método; e, por [consequência], pôr em giro o comércio das carnes, ainda que por ora, se aplique toda a que se puder beneficiar para o consumo da Esquadra, enquanto aquele não tem maior extensão”.
Fazemos aqui uma breve interrupção no ofício do conde de Rezende ao governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, para tecermos algumas considerações quanto à notícia dada pelo Vice-rei, de que “toda a carne foi lançada ao mar por causa da corrupção” (grifos nossos).
Considerando que aquele fato ocorreu quase duas décadas depois de instalada a charqueada de “um homem que conhecia o fabrico da carne do sertão [...] por um processo garantidor da sua longa conservação [...]” (LOPES NETO, 1994, p. 17, grifos do autor), bem como já instaladas estavam outras fábricas de charquear no Continente, vê-se que as carnes salgadas, até então, não tinham a qualidade necessária para suprir as necessidades da armada portuguesa.
Ora, para nós, isto demonstra que as charqueadas em funcionamento no Continente, até àquela época, não haviam atingido um apurado nível técnico no fabrico das carnes. E esta é uma das principais razões para que tenhamos estabelecido aquele período de 1780 a 1800, como o das charqueadas operacionalmente primitivas.
Uma outra, e séria razão da má qualidade do charque foi a dificuldade enfrentada pelos charqueadores na obtenção de sal: produto de suma importância para o funcionamento das charqueadas.
Quando da publicação, em 2009, de nosso trabalho Sal, Escravidão e Charque (MONQUELAT, 2009, p. 11), dentre as perguntas que nos fizemos quanto ao sal, uma delas era a de “com que frenquência e de que modo chegava [o sal] às charqueadas?”.
E logo a seguir acrescentamos: “Uma das primeiras manifestações escritas talvez seja a Relação dos gêneros importados e exportados no Rio Grande de São Pedro no ano de 1787; onde consta que, no decurso deste ano, entraram sessenta e nove embarcações vindas do Rio de Janeiro, Sta. Catarina, Pernagoá e Cananéia, as quais conduziram o seguinte: ‘[...] 152 escravos [...] 15.610 Alqueires de Sal, [...]’. Consta, ainda, na mesma Relação, que saíram do Rio Grande de S. Pedro para o Rio de Janeiro no dito ano de 1787 sessenta e cinco embarcações as quais exportaram o seguinte: ‘[...] 117.221 arrobas de Carne em Xarque; [...] 4 barris de carne em Moura¹’.” (MONQUELAT, 2009, p. 13).
Para que tenhamos uma ideia do alto custo do sal, disponibilizamos aqui uma simples comparação: 1 alqueire de sal, equivalia a 13,8Kg. Naquela época, o alqueire chegou a ser vendido no Continente pelo preço de 1.100 réis. Dividido o preço do alqueire pela quantidade de sal, chegaríamos ao valor de quase 80 réis o quilo.
Vejamos o preço da arroba de charque no mesmo período: 320 réis. Uma arroba é igual a 14,7Kg. Divididos os 320 réis por 14,7Kg., teremos então o preço do quilo do charque, que é igual a mais ou menos 21,77 réis.
Logo podemos dizer que, para comprar um quilo de sal, era necessário vender quatro quilos de charque. Bem, a partir desta constatação e da dificuldade de comprarem essa preciosa mercadoria, que era o sal, podemos deduzir as razões da má qualidade e da pequena produção de charque no Continente de São Pedro do Sul.
Antes de darmos continuidade ao ofício do Vice-rei ao governador do Rio Grande, queremos arrolar, aqui, pelo menos dez charqueadores estabelecidos em Pelotas neste primeiro período, quais sejam: José Pinto Martins, Teodósio Pereira Jacome, João Cardoso da Silva, Miguel da Cunha Pereira, José Tomaz da Silva, Antônio Soares Paiva, José Vieira da Cunha, José Rodrigues Barcelos, Baltazar Gomes Viana e outros mais que apontaremos no decorrer do trabalho.

Continua...

Referências

MONQUELAT, A. F. Sal, escravidão e charque – parte 3. Jornal Diário da Manhã, Pelotas, 15 mar. 2009, p. 13.
MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. José Pinto Martins, o Charque e Pelotas. Jornal Diário da Manhã, Pelotas, 4 e 11 abr. 2010(a).
LOPES NETO, João Simões. Apontamentos referentes à história de Pelotas e de outros dois municípios da Zona Sul: São Lourenço e Canguçu. Pelotas: Armazém Literário, 1994.
XAVIER, Paulo. Salgas de carne. Suplemento Rural Correio do Povo, Porto Alegre, 15 mar. 1974, p. 9.
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¹ Explicamos: a carne de moura, salmoura, ou moira; s. f. (de sal, e do grego mirya, licor que se forma de sal desfeito no humor que sai do peixe, ou carne que se põe de sal para se conservar incorrupto.
Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 22 de agosto de 2010.

sábado, 14 de agosto de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (1)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla


Pelotas e suas fábricas de charquear

Antes de darmos início aos “Apontamentos para uma história do charque no Continente de São Pedro”, queremos esclarecer uma questão: a um estabelecimento saladeiril se pode chamar de indústria?
Ainda que pareça estranho a alguns e não concordem outros, entendemos que sim; pois industriar alguma coisa pode ser visto como a conjugação do trabalho e do capital para transformar a matéria-prima em bens de produção e consumo. Portanto, podemos entender uma charqueada como uma “fábrica de carnes”; aliás, expressão comumente empregada em documentos dos Séculos XVIII e XIX, quando a estas se referem.
Uma fábrica, por sua vez, é a estrutura, construção, organização e fabrico de qualquer coisa. Ou, também, manufatura ou oficina onde se fabrica alguma coisa ou se prepara algum produto.
E o que era uma fábrica de charquear, ou uma charqueada?
Esta pergunta pode ser respondida através do inquérito feito pela Junta da Fazenda do Rio Grande no ano de 1805, para demonstrar que os negociantes sulistas, embora tivessem feito lance maior do que o dos negociantes do Rio de Janeiro, na arrematação do contrato dos dízimos para o triênio de 1806-1808, não teriam esses “condições de honrar o contrato e que os bens que ofereciam em garantia não eram suficientes” (OSÓRIO, 2007, p. 322).
Os negociantes gaúchos, segundo Helen Osório (2007), eram José Vieira da Cunha, capitão José Rodrigues Barcelos, Miguel da Cunha Pereira e Companhia (formada por mais dois sócios, que eram o capitão José Tomaz da Silva e Antônio Soares Paiva). É ainda a autora quem nos diz que entre os ouvidos pela Junta estavam estancieiros e abastados negociantes, que perguntados “da condição econômica de cada um dos proponentes e sobre o quanto valiam as charqueadas, esses os bens que os negociantes haviam oferecido em garantia. Todos os depoentes, ouvidos no final de 1805, fizeram declarações semelhantes à seguinte: ‘[...] as fábricas de charquear carnes neste país consistem em uma casa feita de paus a piques coberta de palha com as mesas e cochos para salgar as carnes, e no campo várias estacas com paus atravessados em que nas mesmas se secam, de sorte que uma das melhores não pode custar mais de 500 até 600$000 e fora daquele ministério para o qual foram destinadas não têm valor algum’ [grifos da autora]” (OSÓRIO, 2007, p. 322-323).
Os cinco sócios proponentes foram apontados como charqueadores; dos quais, três não possuíam terras próprias. Acreditamos tratar-se de Miguel da Cunha Pereira, o capitão José Tomaz da Silva e Antônio Soares Paiva, charqueadores em Pelotas e estabelecidos em terras de Mariana Eufrásia da Silveira (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010c).
Sobre Antônio Soares da Silva foi dito ser “negociante bem estabelecido, porém no tempo da guerra perdeu 3 embarcações e as suas cargas que iam para a cidade da Bahia, donde veio totalmente falido e assim se tem conservado, sendo pública voz a fama que deve mais do que tem” (OSÓRIO, 2007, p. 323).
Quanto a José Vieira da Cunha, diz Osório (2007) ser o único realmente bem instalado e dele já nos ocupamos quando da publicação de nosso trabalho sobre a Sesmaria do Santa Bárbara (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010a).
Esclarecidas as razões e dirimida a questão, sugerimos outra: de que maneira podemos dividir, como forma de melhor entender, a história do charque, ou da indústria saladeiril em Pelotas?
Acreditando que possa ser vista e admitida em três períodos, nos propomos observá-los partindo do pressuposto de que José Pinto Martins aqui estivesse desde o ano de 1780, o que daria início ao primeiro período, que se estenderia até o final do Século XVIII.
O segundo, do início do Século XIX até o final da revolta civil (1845), denominada de “Revolução Farroupilha”.
E, por último, o período que vai do final da revolta civil até o surgimento dos frigoríficos (1917). Desse último período, pelo menos neste trabalho, não nos ocuparemos.
Embora não haja prova documental alguma sobre a presença de José Pinto Martins em Pelotas, desde o ano de 1780, vamos aceitar este fato como possível, ainda que Alvarino da Fontoura Marques, em sua obra “Episódios do ciclo do charque” nos diga que “Em 1779, José Pinto Martins estabeleceu-se, com sua indústria de charque, às margens do arroio Pelotas” (MARQUES, 1987, p. 85).
Não satisfeito em ter estabelecido uma nova data de instalação da primitiva charqueada de Pinto Martins, acrescenta Marques: “Pinto Martins encontrou grande apoio dos habitantes, porque lhes proporcionou mercado para seus gados, dava empregos, abrigava grande número de famílias sem terra, desenvolvia a navegação fluvial e estimulava o comércio de toda a região” (1987, p. 85).
Considerando que Marques, a exemplo de outros pesquisadores, não faz a menor referência de onde extraiu tais afirmações, podemos reputá-las como fruto da imaginação do também autor de outro livro, “Evolução das charqueadas rio-grandenses”.
Para que fique mais evidente nossa afirmação de que Marques deu asas à imaginação, ao se referir a Pinto Martins e sua primitiva charqueada, fazemos aqui duas perguntas: pode-se conceber um estabelecimento, segundo ele fundado em 1779, portanto, três anos depois da retomada da região, em condições de “dar empregos” e abrigar “grande número de famílias sem terra”?
Não. E é tão absurda esta hipótese, que é o próprio Marques (1987, p. 85) quem a contradiz no parágrafo anterior ao das afirmações, quando escreve que “Os campos da região ainda eram considerados de posse indecisa entre as duas coroas”, Portugal e Espanha.
Ora, dar empregos em uma época de mão-de-obra quase que exclusivamente escrava e abrigar nesse mesmo estabelecimento “grande número de famílias sem terra”, nos leva a supor uma fábrica de carnes de médio ou até mesmo de grande porte, o que naquela época e circunstâncias é algo totalmente impossível, para não dizer um contra-senso; haja vista a precariedade e o pouco valor de uma charqueada, como se pode ver das declarações dos estancieiros e negociantes quando inquiridos pela Junta sobre os bens dos cinco proponentes sul-rio-grandenses, que pretendiam arrematar o contrato dos dízimos, para o triênio de 1806-1808. Imaginemos então o que era uma charqueada nos anos 1780 e nos anos seguintes.

Continua...

Referências

MARQUES, A. da F. Evolução das charqueadas rio-grandenses. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1990.
______. Episódios do ciclo do charque. Porto Alegre: Edigal, 1987.
MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. O povoamento de Pelotas – partes 11, 12 e 13. Jornal Diário da Manhã, Pelotas, 20 e 27 de jun e 4 de jul. 2010(a).
______. José Pinto Martins, o Charque e Pelotas. Jornal Diário da Manhã, Pelotas, 4 e 11 abr. 2010(b).
______. O povoamento de Pelotas. vol. I, 2010(c). (No prelo).
OSÓRIO, H. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2007.

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* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 15 de agosto de 2010.
Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

ALEXANDRE INÁCIO DA SILVEIRA, UM AVENTUREIRO DO PAMPA*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

Antes de iniciarmos uma nova série de artigos aqui no DM, série esta que titulamos sob o nome de Apontamentos para uma história do charque no Continente de São Pedro, queremos, por indispensável, apresentar ao leitor um personagem, ao qual, dada sua importância, qualquer história do charque, caso venha a ser escrita, não poderá deixar de citá-lo e a ele dedicar algumas de suas páginas, destacando, nessas, a importância desta figura que foi uma mescla de empreendedor-aventureiro ou aventureiro-empreendedor. Estamos nos referindo a Alexandre Inácio da Silveira.
Quando nos propusemos materializar os Apontamentos, os documentos que tínhamos e outros, que a eles se foram juntando, não haviam, até então, sido lidos, paleografados (em ortografia e pontuação atualizadas) e, tampouco, dispostos em ordem cronológica; portanto, não fazíamos a menor idéia do conteúdo e nem do quanto havia sobre esta figura em nossas mãos.
Feito, o que antes feito não estava, decidimo-nos por dispor nossos apontamentos sobre a história do charque no Continente de São Pedro, em dois períodos. O primeiro deles abrangendo os anos de 1780 a 1800; o segundo, de 1800 a 1845.
A razão, ou razões para tal, serão encontradas quando da publicação do próximo artigo. O primeiro da série, que a este sucederá; pois neste é de Alexandre Inácio da Silveira, que vamos falar.
Nascido na Vila do Rio Grande de São Pedro, por volta do ano de 1760, era filho de Mateus Inácio da Silveira, natural da Freguesia de Nossa Senhora das Angústias (Ilha do Faiol); e de Maria Antônia da Silveira, natural da Freguesia de São Salvador (Ilha do Faiol), que, por sua vez, era filha do alferes Antônio Furtado de Mendonça e de Isabel Francisca da Silveira, mulher do capitão-mor Manoel Bento da Rocha.
Aqui aproveitamos para deixar esclarecido o nome completo de Dona Isabel: Isabel Francisca da Silveira, tia de Alexandre, e não apenas Isabel Silveira, como se supunha; bem como o nome dos pais de Isabel, o que não se tinha certeza: Antônio Furtado de Mendonça e Isabel da Silveira.
Em julho de 1796, solicitou à Rainha o posto de Capitão-mor das Ordenaças, que vagara – conforme suas palavras – por falecimento de seu tio, Manoel Bento da Rocha.
Na solicitação, que lhe foi negada, Alexandre disse ser Ajudante das Ordenanças da Capitania do Rio Grande, e anexou também vários documentos, dentre os quais, um Atestado assinado por Joaquim dos Santos Cassão, Capitão-tenente das Naus da Armada Real e Comandante das fragatas de Sua Majestade, Mãe de Deus, São José e Belona, em cujo teor informava que ele, Alexandre Inácio da Silveira, exercera as funções de Voluntário Exercitante, Sargento de Mar e Guerra e a de Oficial do Detalhe, na fragata Belona até o dia 10 de janeiro de 1779, data em que desembarcou na cidade de Rio Grande.
Já, em requerimento de 17 de julho de 1801, no qual solicitou à Coroa a devolução dos documentos que anexara no pedido de 1796, se dizia Capitão de Fragata, graduado na Real Armada.
Vimos que Alexandre desembarcou em Rio Grande no ano de 1779; portanto, com a aproximada idade de 19 anos, pouco mais ou menos. Não sabemos quais foram suas atividades após o desembarque; mas, em 1º de setembro de 1793, vamos encontrá-lo em Lisboa, na condição de Procurador da Câmara e dos moradores da Capitania do Rio Grande do Sul, peticionando à Rainha. Na Petição encaminhada, disse estar na Corte há mais de dezoito meses e até então não conseguira embarcar para os portos do Rio Grande e Santa Catarina, apesar do Real Aviso de 13 de agosto, com os seguintes gêneros: tecidos, vinho, vinagre, azeite, alcatrão, peixe e dois mil moios de sal.
Dois mil moios de sal era o equivalente a 1.656 toneladas deste produto, sem o qual não haveria carnes salgadas e tampouco estaríamos dando tanta ênfase no nome de Alexandre Inácio da Silveira, considerando-o, quem sabe, o homem mais importante dos primórdios da indústria do charque no Continente de São Pedro.
Alexandre, é bem possível, que tenha passado pelo menos dez anos de sua vida, rocambolescamente envolvido e tenazmente disposto a resolver o problema do sal para a salga das carnes do Continente.
Tendo peticionado em 1º de setembro de 1793, dizendo já estar na Corte há dezoito meses, isto nos leva aos primeiros dias de março de 1792, que é a data de sua chegada em Lisboa. Desta data até o Real Aviso de 13 de agosto de 1795, no qual Sua Majestade é servida Ordenar que se mande passar as necessárias licenças para que o “Suplicante, em seu nome ou em nome de seu representante nesta Corte, Antônio José Batista de Sales, possam transportar, para o Rio Grande e Santa Catarina, todo o sal que pretendem extrair e cujos despachos requereram na Mesa competente, visto que a referida extração [de sal] em nada se opõe às cláusulas do respectivo Contrato [...]”; haviam decorrido três anos.
O Contrato citado no Aviso de Sua Majestade era o Contrato do Estanco do Sal do Brasil, em vigor de 1º de janeiro de 1788 a 1º de abril de 1801, arrematado por Joaquim Pedro Quintela & Companhia.
Poucos meses depois, Alexandre, pensando em resolver o problema do sal para as charqueações e consumo doméstico dos demais habitantes do Continente, suplica ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, por mais sal, o que animaria a todos “aumentarem as suas Fábricas de Carnes, couros salgados, manteigas e queijo, por terem certo e mais perto de suas Oficinas o sal que precisarem, e que até o presente lhes têm faltado”. O motivo da falta devia-se ao fato das capitanias de Pernambuco, Bahia, Paraíba e outras, para as quais os comerciantes do Sul levavam seus gêneros à venda, não quererem vender-lhes o sal que precisavam, devido às condições e restrições impostas pelo Contrato deste produto. E quando o vendiam, vendiam por preços exorbitantes.
Na Súplica feita ao Secretário, disse Alexandre que o sal, se comprado nas Capitanias do Brasil, não só lhes seria mais em conta, como “está provado por experiência observada, que o sal da Europa não é útil à melhor conservação das carnes”.
Anexou ainda ao requerimento uma série de Atestados fornecidos por autoridades das capitanias da Paraíba do Norte e Pernambuco, em que manifestavam o interesse para a capitania do Rio Grande do Sul.
E assim, de súplica em súplica, requerimento pós-requerimento, representação pós representação e diversas outras peripécias e aventuras, é que fomos encontrar nosso Rocambole às voltas com o Vice-rei do Brasil, o Conde de Rezende, no ano de 1798, quando então Alexandre, autorizado e dizendo-se representante de Sua Majestade, pede ao Vice-rei que o auxilie na tarefa que lhe fora designada, no sentido de ver as possibilidades de extrair-se das Salinas de Cabo Frio, distrito do Rio de Janeiro, sal em grandes quantidades.
Mas, segundo palavras do Conde, em Ofício de vinte e oito de abril de 1798, dirigido ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Souza Coutinho, nosso Alexandre andou aprontando alguma coisa que, ao Conde de Rezende, não agradou; pois diz dele o Vice-rei que, “pretendendo o meu favor, para o bom êxito da sua missão”, no sentido de promover as Salinas de Cabo Frio; pois com aquele socorro poderia satisfazer as diligências em que estava empenhado com a Corte; porém, tendo “desaparecido aquele homem” (Alexandre), sem lhe participar os resultados que havia obtido nas Salinas, considerou a cultura do sal na mesma inércia em que se encontrava.
Em outro documento, datado de 28 de outubro de 1798, o Conde, novamente se referindo a Alexandre Inácio da Silveira, diz ao Secretário da Marinha e Ultramar, “que antes minha deliberação tinha concorrido com todas as providências que me requereu Alexandre Inácio da Silveira, a fim de dar conta das diligências, que nessa Corte lhe foram incumbidas; mas, este homem volúvel e sem crédito nesta Praça, coisa nenhuma fez em Cabo Frio, respectiva à sua comissão [incumbência] e benefício daquele povo, o qual, animado por suas promessas, logo tratou de beneficiar as Salinas, que logo, também ficaram no antigo estado, assim que ele inopinadamente dali se retirou, sem ao menos me participar o motivo desta sua não esperada resolução”.
Maiores detalhes sobre a aventura de Alexandre Inácio da Silveira em Cabo Frio, veremos quando da publicação dos Artigos de números 13 e seguintes.

Continua...


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* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 8 de agosto de 2010.
Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.