sexta-feira, 2 de julho de 2010

A (RE)FUNDAÇÃO DA FREGUESIA DE PELOTAS*



Pesquisa em novas fontes desvela o processo de urbanização
de uma cidade que está próxima de completar 200 anos.

Luís Rubira**

Porto Alegre, 15 de outubro de 1779. O governador José Marcelino de Figueiredo escreve uma carta ao Vice-Rei do Brasil, na qual narra uma situação calamitosa que vem enfrentando: “tendo chegado à Vila do Rio Grande muitos Casais oriundos da Praça da Colônia [do Sacramento], e ultimamente chegaram mais quarenta famílias, todos pobres e de arrasto; pedem farinha e carne para comer, e eu não tenho nem para a Tropa, caso V. Ex.a não a mandar, ou dinheiro para comprá-la, como já tenho pedido”. Buscando há algum tempo uma solução para o problema, ele enfatiza: “Já propus a V. Ex.a (e aquele numeroso povo requer) seria muito útil formar com aquela gente uma povoação, ou vila nos Campos chamados das Pelotas”. O grifo, aqui, não é do governador da Província, mas foi colocado propositalmente por Adão Monquelat e Valdinei Marcolla no recém-lançado livro O processo de urbanização de Pelotas e a fazenda do Arroio Moreira.
O pesquisador Adão Monquelat (livreiro que descobriu em Montevidéu o romance A divina pastora, desaparecido durante 145 anos, reeditado pela RBS em 1992), vem sustentar uma dupla tese, amplamente apoiada em anais e outros documentos recolhidos ao longo de anos em arquivos nacionais e estrangeiros. Em primeiro lugar, defende que antes de ser chamada de Freguesia de São Francisco de Paula, o exato lugar onde ocorreu a urbanização da cidade era justamente conhecido como Pelotas; e, em segundo, que o processo deu-se na porção de terras pertencentes ao capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos, por arrendamento, e não em lotes adquiridos.
Trabalhando com a paciência filológica e paleográfica em antigos documentos, Monquelat aporta os Autos de um Processo do ano de 1798, interposto pelo capitão José de Aguiar Peixoto. Oficial no Continente de São Pedro, Peixoto havia recebido em 30 de dezembro de 1790 uma autorização para estabelecer-se num rincão que, até então, não tinha proprietário. Ali passou a criar seus animais e construiu uma charqueada. Tempos depois, por ter tido dois escravos roubados, ele recebe a visita do Juiz Ordinário Luiz Antônio da Silva no dia 20 de março de 1798. Ao trazer tal processo diante do leitor, o foco principal de Monquelat é o modo como o Juiz registra a localidade em que foram inqueridas as testemunhas, e que surge registrada em três momentos do processo como: “Costa do Passo dos Negros, ou Rincão de Pelotas”, “Costa do Passo dos Negros, ou Costa de Pelotas”, e “Rincão de Pelotas”. A partir daqui, a dupla tese de Monquelat entra em andamento. Por um lado, ele insiste no argumento que a localidade era conhecida desde muito cedo por Pelotas; e por outro, com a precisão daqueles que conhecem a antiga cartografia da região, afirma: “é por demais sabido que o local denominado Passo dos Negros não estava localizado na Sesmaria de Pelotas ou Sesmaria do Rincão de Pelotas, cujo primitivo sesmeiro foi o coronel Tomás Luiz Osório”.
Citando documentos, o pesquisador coloca em andamento suas reflexões. Mostra, então, como o capitão José de Aguiar Peixoto vendeu, em 16 de novembro de 1807, ao capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos, uma “porção de terreno com estabelecimento de charqueada, sito no Rincão denominado de Pelotas”. Na sequência, interessado num acontecimento que ocorre sete anos mais tarde, Monquelat aporta também um Termo, lavrado na Fazenda do Arroio Moreira, em 03 de Janeiro de 1814. Nele, o casal Antônio Francisco dos Anjos e Maria Micaela do Nascimento disseram, perante testemunhas que, devido ao fato “do Reverendo Vigário Felício Joaquim Costa Pereira não ter terreno em que edificasse a Igreja Matriz de São Francisco de Paula, desta Freguesia e possuíndo nós, no Distrito de Pelotas, terrenos por compra que fizemos ao casal do falecido José de Aguiar Peixoto, doamos nestes mesmos terrenos, setenta braças de terra de comprido; e trinta braças de frente para se edificar a sobredita Igreja Matriz e seu competente Adro”. Pontuando que a doação para a construção da Igreja Matriz foi formalizada em 1814, Monquelat também informa, pouco antes, que o padre Felício já morava desde 1812 no local que abrigara a charqueada do capitão Aguiar Peixoto, e que pertencia a Antonio dos Anjos, nas ruas que hoje correspondem a Gonçalves Chaves entre Neto e Voluntários.
Antonio dos Anjos doa, portanto, em 1814, a área de terra para a construção da nova Igreja (o grifo é dos autores) e, a partir de então, muitas pessoas o procuram para aforar (arrendar) as terras em torno da mesma. Tudo isto fica registrado no documento central que, na sequência, é apresentado ao leitor, a saber, os “Termos de Aforamento” (realizados, sobretudo, entre 1814 e 1816). Em todos esses termos, Antonio dos Anjos arrenda parte de suas terras, em troca de uma quantia monetária. Todavia, como em sua maior parte os contratos não foram cumpridos pelos arrendatários, o capitão-mor encaminha um Requerimento ao Príncipe Regente para que apure o caso, de modo a receber o que lhe cabe. É então que, novamente, os autores do livro deixam o leitor frente ao modo como o Tabelião lavra o documento no que se refere à localidade. Sobretudo no ano de 1814, os documentos são concluídos ora como “Freguesia de São Francisco de Paula”, ora como “Freguesia de São Francisco de Paula de Pelotas”, o mesmo ocorrendo até a metade 1815, momento a partir do qual surge tão somente “Freguesia de São Francisco de Paula”.
Se inicialmente estávamos frente a documentos que falavam emRincão de Pelotas”, agora estamos diante de outros que trazem o registroFreguesia de São Francisco de Paula de Pelotas”. Por certo, no Termo de Doação ao Padre Felício, o próprio Antônio dos Anjos ora fala emDistrito de Pelotas”, ora em “desta Freguesia” [referindo-se a São Francisco de Paula]. A oscilação não é fortuita. É essa oscilação, presente até hoje para os pesquisadores, que leva Monquelat a ponderar: “Até mesmo trabalhos importantes, como é o caso de Pelotasgênese e desenvolvimento urbano (1780-1835), a certa altura da obra, lê-se: ‘Por Alvará de 7 de julho de 1812, era criada a freguesia de Pelotas, que, inicialmente, chamou-se São Francisco de Paula’ (...) quando, nos parece, seria cronologicamente correto dizer o contrário”. Embora cuidadoso no modo como se dirige ao trabalho de pesquisadores da história de Pelotas, o autor constrói sua própria posição acerca da fundação da freguesia, com base em documentos. Nesse sentido, surge ao final do livro a “Resolução de Consulta da Mesa de Consciência e Ordens”, datada de “31 de janeiro de 1812”, que Crêa (cria) as freguezias do Arroio Grande, Pelotas, e Cangussú na Capitania de S. Pedro do Rio Grande do Sul” e vem assinada por Sua Alteza Real no Palácio do Rio de Janeiro. Tal Resolução teria sido executada depois que os moradores fizeram requerimento para “a creação de Freguezias nos referidos logares”.
Insistindo sobre registros comoCampos chamados das Pelotas”, “Costa de Pelotas”, e “Rincão de Pelotaspara enfatizar o nome primitivo da localidade; pontuando que o capitão Antonio dos Anjos comprou umRincão denominado de Pelotas”; aportando documentos nos quais constam os arrendamentos realizados em logradouros como “do Torres”, “de Santo Antonio”, “da Vigia”, “de São Miguel”, “do Padeiro”, “das Flores”, os quais mostram os nomes dos primeiros habitantes e os locais do processo de urbanização (em ruas que correspondem, respectivamente, às atuais Major Cícero, Senador Mendonça, General Argolo, Dr. Cassiano, Andrade Neves), o livro de Monquelat e Marcolla, é, no mínimo, uma obra que instiga o debate, bem como estimula novas investigações. Sobretudo quando estamos próximos de comemorar os duzentos anos da formação da freguesia que deu origem à cidade de Pelotas.



Resenha publicada no Jornal Diário da Manhã, em 02 de Julho de 2010.
** Professor Adjunto de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas.

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