domingo, 9 de maio de 2010

O POVOAMENTO DE PELOTAS (1)






Introdução

A. F. Monquelat
V. Marcolla

Este trabalho, é evidente, não tem a pretensão de contar a história da Cidade de Pelotas, até porque, “as origens [de uma cidade] são obscuras, enterrada ou irrecuperavelmente apagada uma grande parte de seu passado”, é o que nos ensina Lewis Munford.
Assim sendo, ou sendo exatamente por isso, é que surgem obras mais próximas do fabulário das cidades, do que de histórias da cidade.
Estes fabulários, ou livros de “histórias”, acabam, no decorrer do tempo, estabelecendo outra história, uma história que não houve.
Pelotas, a exemplo de outras tantas cidades, não tem até hoje uma obra de história que esteja à altura de sua importância histórica. Uma obra crível. Uma obra, cujas páginas contenham fatos vividos por homens comuns e não semideuses, heróis ou anjos. Uma obra que nos conte ou relate acontecimentos provocados ou vivenciados por personagens de carne e osso.
Enfim, uma história de tudo e de todos; pois, a história de uma cidade é a história da pluralidade de seus habitantes e cidadãos.
A vinda do charqueador português José Pinto Martins, migrante do Ceará, é celebrada com tanta ênfase e importância que chega a parecer que a este e sua primitiva charqueada, Pelotas fica a dever sua fundação.
Por entendermos que Pelotas, em suas origens, deva muito mais às atividades agro-pastoris do que ao incipiente fabrico de carnes salgadas, podemos afirmar que pouca ou nenhuma importância teve José Pinto Martins e sua charqueada para o desenvolvimento inicial de Pelotas.
Charquear, no Continente do Rio Grande, já era prática estabelecida desde os primórdios do Século XVIII. E, nesta região, tal hábito antecede à chegada do Brigadeiro José da Silva Paes, como se pode ver na carta enviada a Gomes Freire de Andrada em 12 de março de 1737: “Porque há aqui uma tal praga de bichos, que chamam de traça, que tem arruinado vestidos, roupas e sapatos bem como o cartuchame. Este bicho come não só o papel, mas também a pólvora e ainda por ele vi até balas roídas. Quem aqui fosse nojento comeria muito pouco, porque são eles em tamanha abundância que estão caindo no prato por estarem as barracas cheias deles e de moscas que é uma imensidade. Tudo nascido do charque que aqui faziam [...].” (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010, p. 96, grifos nossos).
A Pelotas extradocumental, queiramos ou não, é consequência da ocupação castelhana ocorrida em 1763. Muito embora, haja indícios de que por volta de 1750, por estas terras já houvesse colonos oriundos dos casais trazidos dos Açores.
Nestes apontamentos, é claro, não estamos considerando a concessão de Sesmaria feita a Tomás Luís Osório no ano de 1758, porque este não chegou a ocupar as terras que recebeu no Rincão das Pelotas.
Apesar de não sabermos a partir de quando, o primeiro nome que surge na história da ocupação das terras, que deram origem ao município de Pelotas, é o de Luís Gonçalves Viana. E isto, graças ao Tenente de Dragões Manoel Carvalho de Souza, que a ele se refere da seguinte maneira: “[...] se acha devoluto um Rincão, [...]. O qual, antes da invasão que os espanhóis fizeram no ano de mil setecentos e sessenta e três, povoou-o o falecido Luís Gonçalves Vianna, sem que obtivesse título ou despacho algum. E porque o dito falecido não consta ter herdeiro [...]”.




UM, NÃO É O OUTRO

A historiografia sul-rio-grandense e pelotense têm tratado Luís Gonçalves Viana como se este fosse Luís Gonçalves, o que não é. Pois um, não é o outro.
Dizem – sem a menor prova documental – que Luís Gonçalves Viana pode ter sido o primeiro a se arranchar pelas terras que deram origem a cidade de Pelotas, e que teria tal arranchamento ocorrido antes da ocupação espanhola. Portanto, antes de 1763.
Também é dito que Viana fazia parte do grupo de povoadores que, em 1719, chefiados por João de Magalhães, desceu de Laguna. E, por último, que Luís Gonçalves Viana foi administrador da estância do Bojuru (Rio Grande).
Aos dados antes referidos queremos acrescentar três outros que nos deparamos no decorrer de nossas buscas em arquivos do Rio de Janeiro e Minas Gerais. No do Rio de Janeiro, com data de 1754, consta um requerimento de Luíz Gonçalves Vianna & Cia., “negociantes da Vila do Rio Grande de S. Pedro, em que alegam a suspeição do Ouvidor e Juiz Ordinário da mesma Vila, para o julgamento da causa que tinham pendente com D. Francisco de Vilasena”.
No Arquivo Público Mineiro constam duas provisões passadas em favor de Viana e ambas firmadas por Gomes Freire de Andrada, então Governador e Capitão Geral da Capitania do Rio de Janeiro e das Minas Gerais. A primeira delas, com data de 12 de novembro de 1755, provia “ao dito Luíz Gonçalves Vianna em Administrador do Registo de Viamão, que servirá enquanto se cobrarem por conta da Fazenda Real os direitos dos animais que por ali passarem se, no entanto eu o houver por bem ou S. Majestade não mandar o contrário; e com a referida administração vencerá [receberá] o ordenado de duzentos mil réis por ano, ração de carne e farinha na forma da nomeação. [...]”.
A outra datada em 28 de junho de 1756, diz em seu corpo que “havendo respeito a estar vago o ofício de escrivão da Fazenda Real da Vila do Rio Grande de São Pedro, por falecimento de Joseph Monteyro dos Reis que o exercia, e a ser preciso provê-lo em pessoa de inteligencia e capacidade atendendo as circunstancias que concorrem em Luíz Gonçalves Vianna, e a que servirá com acerto e satisfação, conforme o conceito que faço de sua pessoa: hei por bem de nomear e prover (como por esta o faço) ao dito [...] no referido ofício de Escrivão da Fazenda Real da Vila do Rio Grande de São Pedro [...]”.
Quatro anos depois de nomeado e ainda no posto de escrivão da Provedoria da Fazenda Real, Viana, em ofício de 25 de maio de 1760, solicita ao governador e capitão-general do Rio de Janeiro, conde de Bobadela, (Gomes Freire de Andrada), “promoção para outro cargo, para se livrar dos ultrajes que experimenta por causa das desordens provocadas pelo provedor da Fazenda Real, [Manuel da Costa de Morais Barba Rica]”.
O provedor, bacharel Manuel da Costa de Morais Barba Rica, estava no cargo da Fazenda Real do Rio Grande de São Pedro por decreto de 19 de novembro de 1749, firmado por D. João V.
Antes de verificarmos da impossibilidade de Viana ter sido administrador da estância (ou fazenda) do Bojuru vejamos, segundo Marcia Eckert Miranda, o que era a Fazenda Real e o papel do escrivão, cargo para o qual Luíz Gonçalves Viana foi nomeado em 28 de junho de 1756: “A Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande de São Pedro foi criada pela Portaria de 11 de setembro de 1748, que ordenava também a criação de provedorias na Colônia do Sacramento e em Santa Catariana. Mas o cargo de Provedor da Fazenda Real no Rio Grande de São Pedro foi criado pelo Decreto de S. M. de 17 de novembro de 1749, através da Provisão Régia de 21 de novembro”.
“Subordinado ao provedor, servia o escrivão da Fazenda Real e Vedoria, nomeado pela primeira vez em 1750. A este cabia a escrituração dos livros de registro da Provedoria (registro geral, de receitas, despesas, assentamento de tropas, etc.), dar fé aos documentos por ele transcritos, passar guias e recibos”.
Quanto à estância (ou fazenda) do Bojuru, da qual dizem ter sido Viana administrador, é preciso considerar que, a partir da Portaria do Governador do Rio de Janeiro de 21 de julho de 1742, a Estância passou à administração militar, sob as ordens de um alferes de Dragões. Esta nova fase da administração foi regulada pelas Instruções do Governador da Capitania do Rio de Janeiro de 19 de julho de 1742 ao novo Comandante da Estância Real do Bojuru. Esta determinava que o pessoal empregado passasse a ser formado por um alferes de Dragões que servia de comandante; um cabo-de-esquadra e de dois soldados, sendo que exerciam as mesmas funções dos peões; quatro índios, dois negros e dois domadores (estes só enquanto os índios e negros não fossem capazes de exercer estas funções). Portanto...
A hipótese levantada para presumir que Viana tivesse, antes de 1763, se instalado no “rincão de Pelotas” é a de que na função de administrador do Bojuru (o que não foi) recebesse uma “percentagem sobre as criações dessa estância (e tendo essa percentagem) atingido a um número elevado, ele escolhesse o rincão de Pelotas, para se instalar definitivamente, povoando-o com suas criações”.
Ora, ainda que isso tivesse acontecido, a pergunta é: sendo Viana um homem tão próximo do poder, uma “pessoa de inteligência e capacidade”, porque deixaria de pedir ao governador Gomes Freire de Andrada, que o nomeou duas vezes para importantes cargos, uma carta de sesmaria do rincão onde estava arranchado?
O outro, é o sargento Luís Gonçalves, que André Ribeiro Coutinho, em 30 de junho de 1738, nomeou para Administrador da Estância do Bojuru. Este Luís Gonçalves sim, é bem mais provável que pudesse ter feito parte da Expedição chefiada por João de Magalhães.
Vejamos, então, o corpo da nomeação que levou, e ainda leva historiadores e pesquisadores ao equívoco de acharem que um, é o outro: “Registro de uma portaria do mestre de campo comandante André Ribeiro Coutinho, pela qual nomeia ao sargento Luiz Gonçalves, para governar a estância de Sua Majestade, sita em Bojuru, pelas razões e forma abaixo declaradas: Porquanto, o maioral de Bojuru, Cosme da Silveira, se achar preso por faltar várias vezes às minhas ordens, e ao seu regimento. Bem como últimamente não ter me dado parte de que tinham se ausentado da estância de Sua Majestade, os peões Lourenço Corrêa e José Pinheiro, e lhe ir dar baixa na Vedoria [Repartição, dirigida pelo Vedor] sem minha ordem. Além de pôr no Rincão do Cerro, a eguada que eu lhe havia proibido de fazer, pelo fato de estar este Cerro dado ao paisano Antônio de Souza, por mercê do Sr. General de São Paulo, Gomes Freire de Andrada, a cujo governo pertence a data de terras da parte norte deste Rio Grande, insistindo, ainda, que o fizera porque o Brigadeiro José da Silva Paes, o ordenara. E sendo preciso, que na dita Estância, esteja pessoa que execute o Regimento, que se tem dado para conservação e aumento desta, ao tempo em que cresce o avultado número de animais, que a Fazenda Real tem para sustentar e defender este novo estabelecimento: e me parece que o sargento Luiz Gonçalves, dará inteira satisfação de tudo que no citado Regimento se ordena, por haver assistido na Serra com a Guarda, sem a menor queixa dos moradores, e ter mantido tudo com o maior sossego, é que nomeio ao dito Luiz Gonçalves para governar a Estância do Bojuru, na falta do referido maioral, Cosme da Silveira. E vencerá [receberá] por mês oito mil réis, como o maioral de Torotama, enquanto não se determina outra forma ao dito governo. E mando que todos os peões e domadores obedeçam a Luiz Gonçalves em tudo que este lhes ordenar para o serviço de Sua Majestade, e executem as suas ordens sem a menor contradição, sob pena de maior castigo, que o de prisão. Estreito do Rio Grande de S. Pedro, em 30 de junho de 1738. – Coutinho – E eu, Antônio de Noronha da Câmara, Comissário, o fiz registrar e assinei”.
Voltamos ao nosso Luiz Gonçalves Vianna, que, embora estranho, realmente não requereu Carta de Sesmaria quando botou rancho e povoou as terras que deram origem ao que denominaram de Sesmaria do Monte Bonito.
Daí, e exatamente por não termos prova documental fornecida pelo próprio Vianna, é que entendemos temerário qualquer afirmação de que este tenha sido o primeiro a nelas se arranchar, povoar e cultivar.

Continua...

Referências

MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. O desbravamento do Sul e a ocupação castelhana. Pelotas: Editora Universitária/UFPel, 2010.

MONQUELAT, A. F. MARCOLLA, V. O processo de urbanização de Pelotas e a Fazenda do Arroio Moreira. Pelotas: Editora Universitária/UFPel, 2010.

MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. O povoamento de Pelotas. vol. 1 e 2. Pelotas, 2010. (no prelo).

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